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domingo, julho 26, 2009

Dos avós, e do dia deles

Não vou poder dizer-vos quantas vezes fomos ao Caramulo, ao Vale da Mó, nem ao Luso encher garrafões de água, porque não me lembro. Mas sei que foram muitas. Logo que entrávamos de férias, seguíamos para cima, que é como quem diz, para vossa casa. Levávamos os brinquedos preferidos - cada um com o seu - e lá íamos nós a contar os quilómetros para chegar. Mal víamos a primeira rotunda, começávamos a disputar quem veria primeiro a próxima, e a outra. E depois o ciclo. E o liceu onde a titezinha dava aulas. E depois os plátanos da avenida, com a folhagem enorme, e os raios de luz a passar por entre as folhas verdes. Era por cima delas que depois, no Outono, gostavamos de andar. Ouvi-las estalar, crocantes. Secas. Mas falemos antes do verão, estação dos 'olás', das descobertas. Das férias grandes. Os almoços ajantarados no moinho do avô, onde a água saía dos canos da casa de banho completamente cor-de-laranja. "Água férrea", diziam vocês. E nós assentíamos. Vocês sabiam tantas coisas, e nós nem duvidavamos. Como quando íamos ao Caramulo e tu, avó, descascavas maçãs e laranjas todo o caminho. Passavas os gomos sumarentos - "Uma especialidade" - para o banco de trás onde nós dividíamos por quatro o repasto. E as cascas - ainda sem preocupações ambientais - iam directas da janela para a rua, como se o carro deixasse um rasto de cascas de fruta que permitiria o regresso ao final do dia. Havia os outros em que, de manhã, saíamos cedinho convosco, sandes de salsicha-e-ovo-que-nunca-mais provei-igual na "ceira" que usavas na praça, ao sábado. E fruta - ameixas rainha cláudia, peras duras (como nós gostávamos), maçãs bravo de esmolfe e cerejas. Uma delícia. Passávamos o dia na piscina. Adorávamos entrar com o avô, que tinha um cartão "vip" que nos dava acesso à olímpica e à de saltos, onde eu sempre tive medo de saltar. E também quando íamos para o Palace da Curia, e ficávamos a ver-te observar-nos nos baloiços, lá em cima, ou cá em baixo, enquanto chapinhávamos os pés da água morna do "fosso" pouco fundo que rodeava a piscina. Lembro-me de como a água vinha sempre quente para o primeiro que tirava o cloro do corpo depois da tarde solarenga no Luso. E de como num instante enchíamos os garrafões na fonte da água, e também rapidamente os levávamos para a mala do carro. Era tão bom passar as mãos por água, molhar os pés que estavam quentes do calor. Ainda que nos ralhasses depois, por estarmos todos encharcados. Havia sempre programa em vossa casa. Fosse nas compras no grémio, que confirmavas com cuidado ao chegar a casa; fosse na praça de sábado, no café da vila a seguir ao almoço; na casa da vizinha, que tinha duas filhas da nossa idade; ou nos passeios de bicicleta pelo choupal, que pareciam sempre diferentes e sempre tão compridos. Agora as férias grandes passam num instante. Já não têm três meses. Os passeios ao choupal já não se fazem, e mesmo se fizessem, demorariam não mais de quinze minutos. As pernas são mais ágeis, e o percurso já não sabe nem cheira a descoberta. Além disso, vocês já não estão lá em casa. E é tão difícil explicar aos manos estas memórias que teimam - felizmente - em não deixar que vocês morram dentro de mim. Seria uma pena perder-vos para sempre. Convosco iriam bocadinhos de histórias, e tantos, mas tantos momentos, que nem tenho palavras para dizer todos.
E mais: tenho a certeza que se vocês ainda cá estivessem, seria melhor o caminho por debaixo dos choupos da avenida. As árvores do jardim deixariam passar mais luz. O carro andaria mais devagar só para prolongar a ansiedade da viagem. A alegria da chegada. O abraço do reencontro. E a infância - a nossa infância - iria prolongar-se para sempre. Porque, ao pé dos avós, nunca deixamos de estar de férias. Somos sempre apaparicados, como se a vida fosse um passeio onde tudo é novidade. Como se o outono não desse sinais, com o amarelecer das folhas. E como se as palavras nunca chegassem ao fim.

segunda-feira, julho 20, 2009

(Re)publicação*

Lisboa, Chiado, Fevereiro de 2009
Sai rapidamente do metro, livro metido debaixo do braço num encaixe quase perfeito. Gosta de caminhar assim sempre, mesmo que não tenha hora marcada na agenda, nem combinação com algum amigo. Anda assim simplesmente porque gosta de correr pela calçada portuguesa, envelhecida por tantos pés que por ali passaram. Poetas, escritores, filósofos, contadores de histórias. Calçada tão lusa que impressiona os estrangeiros. Calçada que escorrega quando a chuva teima em não parar num inverno que tarda em ir embora. Calçada que gela em noites frias. E ferve em dias de sol. Calçada que reflecte a luz de Lisboa, que tanta falta faz aos que não estão. Calçada portuguesa é chão da língua da saudade, do fado, de Fernando Pessoa e das pessoas que ele era também. É base sólida dos poemas de Camões, da prosa infantil de Sofia, das linhas despontuadas de Saramago. Calçada portuguesa é suporte de um povo e de uma língua que se querem tão portugueses.
Quando ele sai do metro. Apressado. Livro na mão. Ponho-me sentado no degrau, apoio-me o queixo da palma da mão e olho-o de esguelha. Daquela calçada, naquela escada tão portuguesa que sobe da Baixa para o Chiado, pergunto-me que livro irá ele a ler. Que livro guardará ele debaixo do braço. Tão perto do coração.
*daqui

quinta-feira, julho 16, 2009

Da planície

Era ermo, aquele monte, quando o conheci. Meia dúzia de calhaus enormes, bicheza que a minha mãe viu primeiro que qualquer outra pessoa, e terra. Muita terra. Seca, árida. Clara. Cortada, rachada. Separada pelo calor do sol. Era assim, monte e vale. Valle. Havia duas casas, uma quase sem telhado, outra nem tanto. Alicerces rijos, naquela terra sacrificada pelas diferenças diárias de temperatura. Ora frio gélido à noite. Ora quente incendiário, de dia. Amplitude térmica que não trespassa para as gentes, sempre tão quentes. Tão calmas. Sempre tão iguais umas às outras. Ermo aquele sítio, no meio do nada. Quente, tão quente que o sol está que queima os ombros de quem por lá passa.
Passam-se ali horas rápidas, dentro da acalmia da casa. Das tardes sem televisão e com conversas. Das noites a tocar guitarra e a cantar. E das madrugadas em que a conversa vence o sono, enquanto a lenha estala na lareira alentejana. Baixa e de tijolo-burro. Um copo de vinho tinto que aquece, um queijo manchego e pão alentejano. Isso, e a eternidade. Quadratura perfeita de fins-de-semana perfeitamente inesquecíveis.