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domingo, novembro 28, 2010

D'ele

Ele tem os teus olhos, castanhos escuros. Com pestanhas compridas e enroladas nas pontas, nos cantinhos. Os olhos que pestanejam quando estás nervoso, ou quando não acreditas naquilo que estás a ouvir. Aqueles olhos que choram quando andas contra o vento frio. E o vento frio os fere e os gela, e lhes reclama as lágrimas. Tem aqueles olhos, os teus, os que te fitam sem pestanejar quando te tentam perceber.
Ele tem a tua boca rosada. Secam-se-lhe os lábios como a ti quando está frio e ele os humedece com a língua, sem perceber que aí está o segredo para não os secar. Ele tem-nos, como os teus, carnudos, ondulados, frenéticos e calmos ao mesmo tempo. Daqueles que se mexem depressa, como os teus. Daqueles que reagem ao toque com uma expressão poética.
Ele tem a tua pele pintada de pintas pretas. Tem a tua expressão de contentamento, as tuas rugas de desconfiança, o teu ar sisudo de quem não quer acreditar no toque. Ele tem a tua pele macia, a tua pele pouco enrogada ainda. Ele, como tu, reage ao toque das mãos frias e aconchega-se nas mãos quentes.
Ele tem, do lado direito do peito quando o olhas de frente, uma máquina cheia de energia que teima em nunca descansar. Tem-na ali, fechada, capaz de se proteger ao mínimo ataque. Ele, como tu, construiu-lhe uma fortaleza. Ele tem um aconchego. Como tu, ele tem um aconchego. Um olhar como o teu [o teu olhar?], uma boca como a tua [a tua boca?], uma pele como a tua [a tua pele?]. E uma fortaleza. Tal e qual a tua [será a tua?].

quinta-feira, novembro 25, 2010

oito e oito

É capicua, o número que fizeste um destes dias, como se a vida fosse um jogo de adivinhas. Tu serias uma das palavras mais complicadas e mais difíceis de dizer, pelo menos naquete tempo em que me ofereceste a BMX cor-de-rosa e preta cujos pneus eu por pouco não destruía de tanto os massacrar nas poças de água do caminho entre a tua casa e a nossa. Isto quando éramos vizinhos. Tão perto em distância, tão longe em afectos. Vocês - nem eu sonhava na altura - são os que mimam. Os que nos estragam fazendo todas as vontades, que passam os chocolates que os pais proibiram por baixo da mesa. Os que enrolam uma nota e a metem no nosso bolso das calças, mesmo que não precisemos. Os que nos contam as histórias dos disparates dos nossos pais quando eram pequenos. Todos os segredos guardados numa memória a longo prazo que quase nunca se apaga. Só que tu - nem eu sonhava - não eras isso quando moravas ali ao lado, quando podíamos ver-te todos os dias. É curioso como eu nunca percebi que tu não eras assim até ao momento em que tu passaste, de facto, a ser assim. Ninguém te ensinou a ser, e tu demoraste a perceber que os beijos e os abraços e as perguntas esquisitas não eram mais do que vontade de te sentir mais perto. Dizer-te 'olá', por estes dias, é um prazer. Porque te queixas que os anos pesam (e isso, desculpa, mas vê-se nos teus pés, que o teu corpo já não acompanha o ritmo da tua cabeça), mas não se percebe falando contigo. Percebe-se sim, a vontade que tens de inverter as coisas. Mas sei-te ainda muito pouco daquilo que quereria descobrir. Precisamos de mais horas, de mais tempo, de tantas conversas, de recuperar o caminho das poças de água e os pêssegos roubados ainda verdes. Precisamos de conversas demoradas, e de trocar ideias um com o outro. Que eu acredito que isso de trocar ideias é tão bom para quem as diz como para quem as ouve.
E que o inconformismo que escrevias no jornal quando metias as letras na máquina de escrever, tem-lo agora nas palavras. Isto de ser velho é aborrecido. Um dia explico-te porquê. Querias ser novo outra vez. E isso, aos 88, não é nenhum milagre. É de quem gosta de viver à séria.

quinta-feira, novembro 18, 2010

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Os olhos na ponta dos dedos
Eu gosto muito de ler, e quando vivia na Alameda ia de autocarro para Campo de Ourique para lá, normalmente entretido a ouvir um livro. Quando dava por mim, tinha passado a paragem e já estava em Chelas. Perdi-me vezes sem conta no percurso casa-trabalho, apesar de saber de cor o caminho para o número 95 da rua Francisco Metrass, no bairro de Campo de Ourique em Lisboa. Entre 30 a 40 mil pessoas com deficiência visual procuram, por ano, a nossa ajuda. Reparamos as bengalas de cegos e amblíopes. E temos a maior biblioteca de braille do país. Temos livros portugueses e estrangeiros, e qualquer pessoa, mesmo que não seja associada, pode visitar-nos. São mais de 40 mil, entre obras em papel e em formato digital. Os livros ajudam a passar o tempo. O que é que as pessoas cegas fazem enquanto estão em casa? Ora, esperam muitas vezes o dia inteiro pela família. E tanta coisa podiam fazer. Sentir-se-iam úteis e seriam o orgulho da família. Porque eu sinto o orgulho dos meus filhos quando lêem as conquistas da associação, as minhas conquistas no jornal. Quando os meus filhos metem a chave à porta eu sei exactamente como eles vêm, como eles estão. Vejo pelo modo como eles põem a chave na porta. Vejo pelo tom de voz. Vejo pela maneira de andar, pelos passos. Eu não preciso que eles falem.
Este texto faz parte de 52 histórias do livro/agenda perpétua da ACEP e foi escrito a partir de uma conversa com Vítor Graça, da Associação Promotora do Ensino para Cegos (APEC). As histórias, contadas - e bem contadas - por mais 51 jornalistas e outros tantos fotógrafos, estão à venda online. Para serem partilhadas, como todas as boas histórias merecem.

terça-feira, novembro 16, 2010

¡Hola!

Faltava-me a inspiraçao para escrever. Mas hoje nem a falta de acentos me pára, que eu estou numa cidade que sinto minha, e ando num passeio sem calçada que parece a minha cara. Falei contigo ao telefone e contei-te da minha alegria. Acho que se me notou na voz a emoçao de voltar aqui, a um sítio que conta tanto das minhas histórias a solo. A um lugar onde eu comi tantos petiscos. A ruas que me lembram uma casa e um quarto diferentes dos que conheço agora. Quis chorar de emoçao quando te vi, tao solar, tao parecida com Lisboa. Tao à minha maneira. Tiveste hoje o poder de me revigorar, de me fazer sentir que há vida para lá da rotina, e de me trazer a vontade de escrever aqui. E isso nao era mais do que o que eu andava a precisar. Madrid.