Não vou poder dizer-vos quantas vezes fomos ao Caramulo, ao Vale da Mó, nem ao Luso encher garrafões de água, porque não me lembro. Mas sei que foram muitas. Logo que entrávamos de férias, seguíamos para cima, que é como quem diz, para vossa casa. Levávamos os brinquedos preferidos - cada um com o seu - e lá íamos nós a contar os quilómetros para chegar. Mal víamos a primeira rotunda, começávamos a disputar quem veria primeiro a próxima, e a outra. E depois o ciclo. E o liceu onde a titezinha dava aulas. E depois os plátanos da avenida, com a folhagem enorme, e os raios de luz a passar por entre as folhas verdes. Era por cima delas que depois, no Outono, gostavamos de andar. Ouvi-las estalar, crocantes. Secas. Mas falemos antes do verão, estação dos 'olás', das descobertas. Das férias grandes. Os almoços ajantarados no moinho do avô, onde a água saía dos canos da casa de banho completamente cor-de-laranja. "Água férrea", diziam vocês. E nós assentíamos. Vocês sabiam tantas coisas, e nós nem duvidavamos. Como quando íamos ao Caramulo e tu, avó, descascavas maçãs e laranjas todo o caminho. Passavas os gomos sumarentos - "Uma especialidade" - para o banco de trás onde nós dividíamos por quatro o repasto. E as cascas - ainda sem preocupações ambientais - iam directas da janela para a rua, como se o carro deixasse um rasto de cascas de fruta que permitiria o regresso ao final do dia. Havia os outros em que, de manhã, saíamos cedinho convosco, sandes de salsicha-e-ovo-que-nunca-mais provei-igual na "ceira" que usavas na praça, ao sábado. E fruta - ameixas rainha cláudia, peras duras (como nós gostávamos), maçãs bravo de esmolfe e cerejas. Uma delícia. Passávamos o dia na piscina. Adorávamos entrar com o avô, que tinha um cartão "vip" que nos dava acesso à olímpica e à de saltos, onde eu sempre tive medo de saltar. E também quando íamos para o Palace da Curia, e ficávamos a ver-te observar-nos nos baloiços, lá em cima, ou cá em baixo, enquanto chapinhávamos os pés da água morna do "fosso" pouco fundo que rodeava a piscina. Lembro-me de como a água vinha sempre quente para o primeiro que tirava o cloro do corpo depois da tarde solarenga no Luso. E de como num instante enchíamos os garrafões na fonte da água, e também rapidamente os levávamos para a mala do carro. Era tão bom passar as mãos por água, molhar os pés que estavam quentes do calor. Ainda que nos ralhasses depois, por estarmos todos encharcados. Havia sempre programa em vossa casa. Fosse nas compras no grémio, que confirmavas com cuidado ao chegar a casa; fosse na praça de sábado, no café da vila a seguir ao almoço; na casa da vizinha, que tinha duas filhas da nossa idade; ou nos passeios de bicicleta pelo choupal, que pareciam sempre diferentes e sempre tão compridos. Agora as férias grandes passam num instante. Já não têm três meses. Os passeios ao choupal já não se fazem, e mesmo se fizessem, demorariam não mais de quinze minutos. As pernas são mais ágeis, e o percurso já não sabe nem cheira a descoberta. Além disso, vocês já não estão lá em casa. E é tão difícil explicar aos manos estas memórias que teimam - felizmente - em não deixar que vocês morram dentro de mim. Seria uma pena perder-vos para sempre. Convosco iriam bocadinhos de histórias, e tantos, mas tantos momentos, que nem tenho palavras para dizer todos.
E mais: tenho a certeza que se vocês ainda cá estivessem, seria melhor o caminho por debaixo dos choupos da avenida. As árvores do jardim deixariam passar mais luz. O carro andaria mais devagar só para prolongar a ansiedade da viagem. A alegria da chegada. O abraço do reencontro. E a infância - a nossa infância - iria prolongar-se para sempre. Porque, ao pé dos avós, nunca deixamos de estar de férias. Somos sempre apaparicados, como se a vida fosse um passeio onde tudo é novidade. Como se o outono não desse sinais, com o amarelecer das folhas. E como se as palavras nunca chegassem ao fim.