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sábado, fevereiro 18, 2012

apresentações

olá Francisca,
isto está uma confusão mas quando se entra no quarto quente da maternidade, nem se nota, confesso. cheiras tão bem que o perfume do teu cabelo supera todos os aromas de flores, sejam elas quais sejam. é fácil gostar de ti: és tão pequenina como linda, mal choras, comes a horas certas, gostas de tomar banho na água morna naquela banheira de plástico estrategicamente colocada no meio do quarto, és leve como uma pluma, tens um mundo inteiro à tua frente, tens a atenção de toda a gente, tens uma vida inteira para viver. e, no entanto, o mundo gira à tua volta, as visitas não deixam descansar a tua mãe, os colos disputam-te pelo desejo de pegar-te mais um pouco, de sentir este pedaço-de-gente-que-é-o-sinal-mais-real-de-que-a-vida-está-sempre-a-renovar-se.
és isso mesmo: vida. és energia, és esperança, és amor, és ternura, és um ratinho pequeno que se acomoda nos braços das avós e das primas e das tias todas e faz com que se pense que as coisas todas são poucas para descrever a novidade de te ter ao pé de nós.
o tempo anda muito rápido mas a agenda tem sempre vaga para ti, francisca. e vai ser difícil explicar à troika que os cueirinhos têm tecidos macios, bordados e folhos que podem ajudar a esquecer a crise. vai ser complicado olhar-te para os olhos e disfarçar a surpresa de serem de uma cor que não tem nome e de uma curiosidade que mete inveja aos olhares cansados de todos os dias, que lutam contra a velocidade das horas dos dias que passam e que procuram descanso numa almofada com a fronha lavada, ao fim do dia. vai ser difícil explicar-te que às vezes, o dia-a-dia nos cega tanto que não conseguimos ver o que é importante, que nem sempre - por mais que queiramos - conseguimos aquilo que queremos. vai ser desafiante ensinar-te que as cores e os cheiros e as pessoas fazem parte do mundo que nos rodeia, e que a eterna magia das coisas é olhar sempre para elas como tu olhas para nós. como se não as conhecêssemos.
não sei como, mas sustenho a respiração para não te acordar. não quero adiantar-me. vou acompanhar-te por aí.

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

anda comigo ao fim do mundo com bons ares.

A liberdade é um trem e nem se discute. Passa por nós, apanhamo-la se conseguirmos. Se quisermos. É flexível até acabarem os carris. No fim do mundo há carris estreitos e o caminho tem princípio mas parece que não acaba. A liberdade aqui mede-se pela resistência que temos à chuva numa estrada de terra batida enquanto esperamos que apareça alguém, ocupe e ofereça boleia no único carro parado, estacionado no meio da estrada. A liberdade do fim do mundo escapa-nos porque somos demasiado pequenas para o silêncio das serras e dos lagos, que se misturam e se tocam, e parecem beijar-se sem pudor durante o dia. Os dias são compridos no fim do mundo, estranhamos que não anoiteça antes de adormecermos e surpreendemo-nos que o dia nasça antes de nos deitarmos.
No fim do mundo falamos línguas diferentes das do dia-a-dia, rimos ao telefone com risinhos de adolescentes e emocionamo-nos no teleférico, enquanto o nariz quase não aguenta a pureza do ar fresco.
No fim do mundo parece que estamos sozinhos na imensidão do lago que arrepia. Ao mesmo tempo parece que nunca havemos de estar sozinhos tal é a imensidão da paisagem. Vamos com amigas, andamos por caminhos de terra batida, roemos maçãs como na música, suculentas, na paragem do comboio do fim do mundo. Mas o frio da terra do fogo pouco se sente quando nos safamos entre as poças de lama, com a rapidez de uns passos meio ansiosos de encontrar aquilo que procuramos ali. Os pés não se baralham, o espanhol fala-se rápido enquanto se inventam palavras que fazem sorrir por não existirem. Bebemos mate muito doce e esperamos que o frio do fim do mundo fique para sempre na memória. Um frio quente, este do fim do mundo. Como o calor de La Boca, que tem as cores todas do mundo. Sejam uma horas ou um par de dias, a cidade é sempre a cidade. Há barulho a toda a hora, pessoas a toda a hora. Cores, carros, cheiros, sabores, palavras. Na cidade quente de verão há avenidas tão largas que não se atravessam de uma só vez. Há a sensação de estar num sítio que conhecemos sempre mas que, ao mesmo tempo, nos obriga a orientarmo-nos no mapa. Há a diversidade de caras, a incompatibilidade de pensamentos, a colecção de memórias boas. Viagens de barco com hora marcada, chuva uruguaia que encharca a roupa e calor que seca o corpo e queima a pele. Vêem-se cavalos à solta num filme inesquecível cujo princípio imperceptível não nos deixa apagar a memória nem terminar a sensação de liberdade. Casas com cores, autocarro com cores, rua com cores, coração com cores.
Seja a Ruta nº3 que nos leva ao mar e deixa-nos pisar o ponto mais a sul do globo antes do pólo. Seja a 9 de Julho que nos suspende a respiração. Seja um beijo. Um abraço. Uma palavra. Há alguma coisa ali. Um mundo inteiro.
Não sei por que te conto estas coisas, que sei que não vais perceber se não fores lá também. O fim do mundo tem coisas assim: deixa-nos a pensar que pode ser onde nós quisermos.