A liberdade é um trem e nem se discute. Passa por nós, apanhamo-la se conseguirmos. Se quisermos. É flexível até acabarem os carris. No fim do mundo há carris estreitos e o caminho tem princípio mas parece que não acaba. A liberdade aqui mede-se pela resistência que temos à chuva numa estrada de terra batida enquanto esperamos que apareça alguém, ocupe e ofereça boleia no único carro parado, estacionado no meio da estrada. A liberdade do fim do mundo escapa-nos porque somos demasiado pequenas para o silêncio das serras e dos lagos, que se misturam e se tocam, e parecem beijar-se sem pudor durante o dia. Os dias são compridos no fim do mundo, estranhamos que não anoiteça antes de adormecermos e surpreendemo-nos que o dia nasça antes de nos deitarmos.
No fim do mundo falamos línguas diferentes das do dia-a-dia, rimos ao telefone com risinhos de adolescentes e emocionamo-nos no teleférico, enquanto o nariz quase não aguenta a pureza do ar fresco.
No fim do mundo parece que estamos sozinhos na imensidão do lago que arrepia. Ao mesmo tempo parece que nunca havemos de estar sozinhos tal é a imensidão da paisagem. Vamos com amigas, andamos por caminhos de terra batida, roemos maçãs como na música, suculentas, na paragem do comboio do fim do mundo. Mas o frio da terra do fogo pouco se sente quando nos safamos entre as poças de lama, com a rapidez de uns passos meio ansiosos de encontrar aquilo que procuramos ali. Os pés não se baralham, o espanhol fala-se rápido enquanto se inventam palavras que fazem sorrir por não existirem. Bebemos mate muito doce e esperamos que o frio do fim do mundo fique para sempre na memória. Um frio quente, este do fim do mundo. Como o calor de La Boca, que tem as cores todas do mundo. Sejam uma horas ou um par de dias, a cidade é sempre a cidade. Há barulho a toda a hora, pessoas a toda a hora. Cores, carros, cheiros, sabores, palavras. Na cidade quente de verão há avenidas tão largas que não se atravessam de uma só vez. Há a sensação de estar num sítio que conhecemos sempre mas que, ao mesmo tempo, nos obriga a orientarmo-nos no mapa. Há a diversidade de caras, a incompatibilidade de pensamentos, a colecção de memórias boas. Viagens de barco com hora marcada, chuva uruguaia que encharca a roupa e calor que seca o corpo e queima a pele. Vêem-se cavalos à solta num filme inesquecível cujo princípio imperceptível não nos deixa apagar a memória nem terminar a sensação de liberdade. Casas com cores, autocarro com cores, rua com cores, coração com cores. Seja a Ruta nº3 que nos leva ao mar e deixa-nos pisar o ponto mais a sul do globo antes do pólo. Seja a 9 de Julho que nos suspende a respiração. Seja um beijo. Um abraço. Uma palavra. Há alguma coisa ali. Um mundo inteiro.
Não sei por que te conto estas coisas, que sei que não vais perceber se não fores lá também. O fim do mundo tem coisas assim: deixa-nos a pensar que pode ser onde nós quisermos.
Não sei por que te conto estas coisas, que sei que não vais perceber se não fores lá também. O fim do mundo tem coisas assim: deixa-nos a pensar que pode ser onde nós quisermos.
2 comentários:
É aquela coisa da felicidade que salta do peito e nos deixa sem ar. Agora fiquei assim outra vez.
sinto que foi só o teu ponto de partida!!
escreve mais.
Enviar um comentário