Já era noite quando pôs a chave na ignição e a rodou. O motor ligou-se de imediato, apesar da temperatura baixar de dia para dia. Todos os dias. Estava a chegar o outono, pensava. Como o tempo passa. Naquele dia não apetecia ir directo para casa. Apetecia-lhe fugir do hábito. Não queria sentar-se frente à televisão, descalçar-se, o zapping do costume. Carteira ao colo, dar uma volta aos papéis, passá-los para a lista de contactos, separar os recibos da gasolina dos das refeições. Passar pelas brasas e acordar sobressaltado, meia hora depois, pensando na estupidez de não ter ligado o despertador. Levantar-se de rompante, como se o tempo lhe tivesse atacado a alma, encher a taça de sopa e pô-la a aquecer no microondas. Ali, sentado no banco do carro, não lhe apetecia pensar no que fazer para o almoço de amanhã. Não tinha vontade de cafés corriqueiros, nem de matar saudades dos amigos que deixara de ver por falta de tempo. Faltava-lhe mais do que tempo para os outros. Aumentou o volume do rádio. Estava sem vontade de ouvir notícias. O acidente de Penafiel. A reeleição na comissão europeia. A chuva prevista pelo instituto de meteorologia. Sussurrou uma coisa que nem percebeu bem o que era. Apetecia-lhe fugir daquele corpo, ser outra coisa, ter tempo para observar quem era. De fora. E depois, de um momento para o outro arrancou. Marcha atrás rápida. Decidida. Como se todos aqueles momentos fossem vãos face à vontade de conhecer-se. Acelerou a fundo. O fumo negro no tubo de escape gasto. E a cabeça inclinada para trás. Sem a contrapressão do pescoço. Mão no volante, mão nas mudanças, mão no cabelo, mão na mão. Sorriu ao espelho retrovisor e parou na entrada da rotunda, à espera de prioridade. As luzes reflectiam os faróis a passar, um atrás do outro. Sem pressas, arrancou. Pedal moderado. Pedal a fundo. Fundo pedalar. Seguiu, pelo caminho, sem olhar a combustível, a tempo, a horas, a espaço, a pensamentos. Esvaziou a cabeça, esqueceu a realidade. Passeou pela cidade, num instante que só deu para perceber que tinha saudades suas. Matou-as de um trago. Não fosse o tempo acabar.
1 comentário:
Muito bem. E muito bom.
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