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segunda-feira, outubro 13, 2008

Do reencontro


Disse-lhe palavras ao ouvido, baixinho, para não a acordar. "-És linda", sussurrou, com a frescura de uma primeira vez. Aconchegou o lençol que descaía e deixava a descoberto o ombro. Olhou-a debruçado sobre a cama como que a adorá-la. As pálpebras brancas, quase transparentes, deixavam vislumbrar as veias arroxeadas. Os olhos azul celeste, agora tapados, eram únicos. Nunca os tinha visto senão nela. O nariz fino e alto, podia ser perturbador. Mas pelo contrário, encaixava na perfeição dos traços. A tez muito branca, a expressão dos olhos, os dentes muito brancos. Fez-lhe uma festa na cabeça. O cabelo louro, normalmente apanhado numa banana, estava solto e ainda conservava alguns ganchos esquecidos. Envolveu-a num abraço pequeno, como que a protegê-la.

Foi esse abraço que recordou naquela noite. Deitou a cabeça na cama e desejou estar a acordar na manhã do dia anterior. Queria rever tudo para perceber aquilo que lhe tinha falhado. Fechou os olhos e regressou ao hall do hospital. O verde das paredes, o cheiro a desinfectante, tudo regressou outra vez ao ângulo de visão. Voltou a ver a velhota a coxear, as macas no corredor, enfermeiros e médicos atarefados, máquinas a apitarem em sinal de alerta. Os pés a arrastarem-se-lhe por entre os mosaicos cor de rosa com pedrinhas brilhantes. Voltou a entrar no elevador e a subir ao terceiro andar. O percurso era o mesmo já há algumas semanas, não sabia precisar quantas. Desde que a doença tinha progredido até ao ponto em que deveria ser acompanhada 24 horas por técnicos especializados. Nesse dia, quando chegou ao quarto, a cama estava vazia.

Foram dias que pareceram séculos, horas que pareceram meses. O tempo arrastou-se de tal maneira que, às vezes, o próprio corpo teimava e enganava o sono, que já não o abandonava. Tinha vontade própria a necessidade de ficar por debaixo dos lençóis a sentir-lhe o cheiro. Depois do choque inicial, sentia-se em constante descarga eléctrica, sem querer acreditar que ela já não estava nem ia estar mais. Para ele, o primeiro a desaparecer seria sempre ele, tão mitigado por sustos, faltas de ar, arritmias. Vezes sem conta, tinha sido ela a marcar o 112, a chamar a ambulância, a receber os paramédicos. Tinha um coração cansado, o seu homem. Uns pulmões sujos pelos três maços de tabaco que fumou anos a fio. Quando iam para a praia, em Agosto, o ar húmido molhava os brônquios que não podiam com tanta humidade. Acentuavam-se as debilidades, chamava-se a âmbulância. Mas mal chegava ao hospital, tudo se desvanecia. Queria logo voltar, para casa, para o calor da cama, para a confusão das refeições, para o ruído familiar.

E agora, deitado na cama, recordava que sempre pensara ser o primeiro. Nunca tinha sequer imaginado ter de prosseguir sem ela. Sem a leve presença, e deveras importante. Era a matriarca da família, como o meu pai disse um dia. " A Petit era o suporte de tudo". Era mesmo. Sem ela, as coisas nunca voltaram a ser as mesmas.

O despertar era um martírio, mesmo nos dias em que os raios entravam sem autorização por entre as persianas mal fechadas. A noite passava em constante sobressalto, com despertares sistemáticos. Não dormia, nem sonhava. Ficava muito tempo enroscado, outrora 'lapa', agora rocha, sem vida. A roupa amontoava-se aos pés da cama, e às vezes cobria o corpo doentio, de quem não tem vontade senão de descansar. De não pensar. Na mente dele, apenas ela.

Tinha saudades dela a todas as horas. Sentia a falta daquela presença familiar, tantas vezes camuflada por entre a correria do quotidiano. O certo é que estava sempre lá e, de um momento para o outro, deixara de estar. Sem aviso, sem preparação. Teve de e contra vontade, adaptar-se a esta nova realidade. Prosseguir caminhada sem um braço, sem um olho, sem metade do coração. A ausência corrói, dói, faz dano. Sem avisar, deixou um vazio que só o reenconto pôde preencher.


5 comentários:

QT disse...

Gostei muito, Mariana...mesmo muito..=D

Parabéns e beijos

ARN disse...

Arrepiante. Gosto muito de ti.

Unknown disse...

Já sabia que escrevias bem... mas fiquei surpreendida com o Blog! :)
Está muito bom os meus parabéns guapaaa!

Anónimo disse...

adorei mana
beijinho

eles iam adorar

Lino Pintado disse...

Muito bonito. Parabéns!