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quarta-feira, novembro 19, 2008

Ao Terreiro do Paço

À primeira vista

Depois de um dia complicado, mais complicado se torna sair do carro-patrulha com o frio que faz lá fora. Vale o turno da noite, que hoje termina junto ao rio, cenário que ajuda pela calma. Em redor, as luzes natalícias iluminam o Terreiro do Paço, ainda que ache todo este 'pisca-pisca' um grande exagero. Parece-me um grande festival, um acender e apagar de flashes. Encosto o corpo cansado à carrinha da polícia municipal e ponho-me a olhar para o velho relógio de aço, já encardido dos anos, a ver se o tempo passa mais depressa. Walkie-talkie no ouvido esquerdo, imagino-me a chegar a casa, nos subúrbios da capital. Terei o jantar já pronto a aquecer, dentro do microondas, como de resto sempre que a ronda acaba mais tarde. Esfrego as mãos uma na outra e sopro. O ar quente sai-me da boca e fumega na noite fria. Mas aquece as mãos, ressequidas pelo frio. Noite tranquila, que tudo permite. Até aquecer as mãos em pleno Terreiro do Paço, a apreciar a envolvência do local. Há umas 10 pessoas em toda a praça. Algumas esperam pelo eléctrico. Outras passeiam calmamente. Outras ainda andam apressadas, com urgência. Porque esta coisa das cidades grandes dormirem é mentira. Nada pára. Uma mulher gesticula, fala depressa. Dirige-se à esquadra na esquina e perco-a de vista. Dou a volta. Observo que se aproxima do hall, mas não passa da porta. Volta atrás. Fala ao telemóvel e mal se percebem as palavras que pronuncia. Parece falar para ninguém, 'profeta de horas vagas' que nem os fieís escutam com atenção. Nem uma palavra, nem um grito, um gesto. Nada. Só o gesticular de coisas que não conhecia, e o pronunciar de palavras que pareciam de amargura, de tristeza, de decepção. Perco-a de vista e olho o relógio outra vez. Onze e meia. Mais trinta minutos deste silêncio citadino e ponho-me a caminho do descanso. Vinda do lado do arco da rua Augusta, aproxima-se uma rapariga. Tem pouco mais de 20 anos. Ofegante, passo apressado, vem direita a mim. Atravessa cuidadosamente a estrada e diz-me que, mesmo em frente, do outro lado da estrada, está uma mulher deitada no chão. Sobressaltado, aviso o colega de turno e atravesso a estrada, quase sem pestanejar. Debaixo da paragem do autocarro, uma mulher jaz imóvel sobre as pedras da calçada portuguesa, gasta pelas constantes passagens. Entretanto, o INEM foi já chamado ao local. Observo-a à distância. A mulher está estendida no chão, sem sinais de agressão apesar de afirmar ter sido agredida. Lamento o trabalho que estes 'loucos' dão nestas noites frias, quando o que menos apetece é trabalhar. A mulher geme agora, com dores. No pescoço, que - grita - não consegue mexer, tal a agressão. Nas pernas, na coluna. E perturba mais saber que talvez vá atrasar-me na minha hora de saída, que o tempo não espera por estas emergências. Casos de loucos de Lisboa, vi já muitos. E este, digo, 'já conheço de cor'. As mãos trémulas dão a sensação de desgaste desta mulher. Mas não me engana. Agredida no eléctrico. No eléctrico da vida.

À segunda vista

Descer a Avenida da Liberdade em época de luzes de Natal, é como embarcar num dos mais bonitos cenários que presenciei. É fixar os olhos na iluminação e acelerar a velocidade, de maneira a que as pequenas lâmpadas se tranformem num 'combóio´de luz. É olhar em volta e descobrir uma Lisboa que cheira a Natal, um frio que sabe bem. A Rua Augusta tranforma-se em corredor de luz e sombras e, apesar de não existir, não é difícil começar a cantarolar o Jingle Bells, baixinho, para dentro. Atravesso o arco da rua Augusta. Falta pouco para as onze da noite e o Tejo está iluminado pelas luzes psicadélicas que enfeitam o Terreiro do Paço. Atravessamos, tu e eu, quais exploradoras da noite lisboeta, amantes de músicas efusivas que nos permitem gritar, saltar, dançar, e aproveitar o vermelho do semáforo para sair porta fora e agitar o corpo, despojadas de tudo o que é politicamente correcto. Ali, não há protocolos a seguir. Há uma cumplicidade latente.
E na espera, sentamo-nos no meio da praça, no banco frio. Às vezes reparamos nos mendigos estendidos na rua. e pomo-nos a elogiar-lhes a capacidade de resistência ao frio. Questionamos se terão, eles também uma alternativa. Uma oportunidade.
E ali sentadas, sentimo-nos numa discoteca em silêncio, onde há espaço para discutir um assunto já batido. Falamos de amor.
Chama-nos a atenção uma senhora. Caminha rapidamente, de um lado para o outro. Atravessa a estrada. 'Não parece nada bem', dizes, com aquele ar apreensivo de quem sabe o que diz mas não sabe o que fazer. Reparo nas mãos irrequietas. Que gesticulam desregradas ao ritmo de palavras que parecem noutra língua. Calamo-nos e observamos. E voltamos ao assunto do amor. Da saudade. E do hábito. E ela, por momentos, desaparece do nosso ângulo de visão. Passa um eléctrico. Pára na paragem. Toca a campaínha. E no momento em que arranca, nesse milésimo de segundo, olho para a esquerda e vejo-a caída no chão. Ela que, há pouco parecia preocupada. Perturbada. Nervosa. Apreensiva. Irritada. Codificada.
Agora está apenas prostrada no chão. Gelado. Corpo inerte. Caída sobre a carteira castanha. No chão branco da calçada portuguesa. Gelada. Ligamos ao INEM, as perguntas do costume. 'O que disse? Que idade tem? O que estava a fazer?'. O senhor desculpe, mas está uma mulher caída na paragem do autocarro e o senhor faz-me essas perguntas? Eu sei lá! Sei que ainda agora estava em pé, a caminhar louca, de um lado para o outro. E agora, sem mais nem menos, está caída no chão. Um homem aproxima-se também. Somos já três a assistir ao espéctáculo. Olho em volta. Alguém que ajude? De olhos fechados, nem sinal de vida naquele corpo 'adormecido'. Um carro da polícia municipal do outro lado da estrada. Apresso-me a atravessar a estrada. 'Boa noite. Está uma senhora caída ali no chão. Na paragem. Mesmo aqui em frente. Já ligámos ao INEM'. Atravesso a estrada. Oiço qualquer coisa relacionada com a ajuda de Deus. O homem está a pegar-lhe na mão e a falar-lhe de Deus. E a ambulância que não chega. Os olhos abrem e fecham repetidamente. As mãos tremem, não sei se de frio, se de raiva, se de nervoso, se de medo. Queixa-se de dores. De uns malandros que lhe roubaram a carteira. 'Não, a carteira está aqui minha senhora'. Não, a carteira era vermelha. Essa é castanha, não é? E agarra um lenço enrolado na mão, aperta-o com força. E o telemóvel apaga a luz azul. E ela geme de dores no pescoço, que foi agredida, e que lhe roubaram a carteira vermelha com os documentos, que não, que não é pelo dinheiro mas pelo passe. Como é que eu vou para casa agora? E eu não devia pagar nada porque foram eles que mo levaram. Ai se eu os apanho.
E o tempo passa, diz o polícia que conhece a história muito bem, que é 'complicada'. E eu assinto. E compreendo. Será loucura? Nada que não me tenha passado já pela cabeça, fruto do meu cepticismo. Credível? Sim. Em sofrimento? Também. E esperneia mais uma vez, e o pescoço que não consegue mexer. E as pernas. E a carteira. E a agressão no eléctrico. E a queixa que fez na polícia, ou que não fez porque não a deixaram. Porque precisa de ir primeiro ao hospital e ser observada pelo médico. E a ambulância a caminho. Não chega para acabar com o tormento. Observo de perto. Olho em meu redor. As luzes piscam ininterrupamente, sem pestanejar. O mundo continua invariavelmente a girar. A vida não pára e a mulher caída no chão de pedra. Frio. E preciso de um silêncio meu para digerir tudo isto. Avalio o meu cepticismo. Aproximo-me e olho-a nos olhos. Apetece-me passar-lhe a mão pela cabeça. Falta-lhe carinho. Falta-lhe amor. Falta-lhe atenção. Consegue-a. E temo ser agora mal interpretada nesta ideia simplificada que tenho da vida, de que nem tudo é o que parece, de que nem tudo tem de ser tão linear como o estabelecido. E percorro memórias, e sucedem-se imagens na minha cabeça. De que vale a atenção, se ela é acompanhada de pesar? Se os olhos que nos olham temem por nós? Engulo em seco estes pensamentos. E comento quanta solidão há nesta gente das cidades, nesta gente da actualidade, nesta gente de um mundo tão global que se conhece tão rapidamente e mais velozmente de desvincula. Num mundo que de repente se torna muito maior do que alguma vez poderemos albergar. E no qual às vezes, muitas, tantas, tanta gente não consegue encontrar um lugar que seja seu.

À terceira vista
E agora, aqui no chão frio, todo o meu corpo é chaga que reflecte o estado da minha cabeça. Da desordem, conheço os cantos à casa. Nada me faz recuar nas decisões. No início, a vida era feita de pequenas coisas, algumas delas pequenos dramas. Mas parece que agora, tudo na minha cabeça ganha uma dimensão desmedida, da qual perco facilmente o controlo. Espero pelo autocarro apinhado com a expectativa de quem aguarda uma oportunidade de iluminar um quotidiano negro. A pancada serve-me de alimento ao ego, tantas vezes ferido, outras tantas amargurado. E são tantas as pessoas que se cruzam no meu caminho que, muitas vezes não custa tentar chamar a atenção. E no chão frio, finjo-me esquecida, que é como me sinto sempre. Desprovida de bens, crio aos olhos dos que passam uma personagem que já não sou eu, senão a condensação de ódio, tristeza e solidão. Sinto-me só, e então? Tanta gente se sente assim, hoje em dia. Os dias passam e sem darmos por eles já são anos que passam sem darmos por eles e já são décadas. Que passam sem darmos por elas e já é a vida. E a vida passa sem darmos por ela. E no entanto, há pouco barata tonta, alvo de olhares curiosos, transformo-me num ápice em vítima da minha própria vida, camuflada por uma fraqueza de pernas que é real e me deixa afundar sob a paragem do autocarro. E os olhares curiosos passam a síndrome de preocupação. De pesar.
Olham-me na esperança de que lhes diga algo sobre a vida. Perguntam-me as razões da queda. Como explicar se eu própria não as sei? Fui coleccionando quedas, umas atrás das outras. E quando reparei, estava assim. Despojei-me do meu eu. Vivo uma vida paralela num corpo que já não reconheço, ora infecundo de esperança, ora mordaz de desespero, ora calejado de loucura.
E este plano contrapicado com que olho os que me olham, aqui, assim, caída em pleno Terreiro do Paço, não é mais que o meu palco, onde preconizo devaneios de uma vida que já nada me diz, senão o meu nome. Porque agora, só nele me reconheço.


E a vida passa, e continua, e alberga tantas vidas nela.
E é plateia observante. Expectante.
E também palco.

7 comentários:

Anónimo disse...

É por me conseguires arrepiar a cada texto que gosto de ti.
Por conheceres as letras e te deixares levar por elas.
Por teres a coragem, o gosto, a paixão pelos textos que teimam em invadir-te a cabeça.

Às vezes gostava de ser como tu.

Tenho saudades de te ter aqui ao lado.

Tenho mesmo.

Obrigaste-me tantas vezes a ser melhor!

*

Sarita disse...

Já não é a primeira vez, mas deixaste-me sem palavras.
Por conseguires ler tão bem as outras pessoas. Por confrontares as coisas com que te deparas, mesmo que não tenhas uma solução imediata.

Admiro-te.

E estou aqui. Sempre. Tu sabes.

Bjo grande*

Andreia disse...

Quero escrever e não sei bem por onde começar...neste momento passam mil coisas na minha cabeça sobre quem escreveu este texto...

Apenas consigo dizer que ADOREI e para mim, foi o melhor dos teus textos que já li.

Também adorei da parte da "Cumplicidade latente". Realmente só nós para fazermos essas loucuras em plena rua lisboeta, quando à nossa frente está apenas um sinal vermelho que nos deixa completamente desorientadas.

Adoro-te sua Badochenta********

QT disse...

Marianne depois de uns minutos de pausa, ver se consigo deixar-te um comentário decente..=)

Tenho de dizer-te que adorei..pura e simplesmente.

A maneira como abordaste esta "peça" proporcionada pela vida real..todas as personagens, a descrição do espaço, o ângulo (neste caso 3 diferentes)...

Enfim podia estar aqui a debitar palavras...mas acho que se percebe que para mim este é o teu melhor texto.

Bjs e continuação de boas escritas e vivências..=D

Unknown disse...

simplespente FANTÁSTICO!!!
os sentimentos...como podem ser tão complexos... um acontecimento e três perspectivas!

Está mesmo muito bom Mariana! ;)

Continua a desenvolver essa tua criatividade e escrita!!!

Bruno disse...

A cada palavra, ... um pormenor, um gesto, um olhar, ...
A vida que é uma peça de teatro...

...
...
Bjoka
Bruno P

Deb disse...

Valeu a pena esperar para ler este texto com a calma que ele merece!

É assim que nos conquista a nossa cidade, conquistam as nossas cidades, pequenas ou grandes, mas nossas. Nossas nessa pertença que... se esvai. Somos de facto uma migalha neste mundo.

Obrigada por me teres descrito a minha Lisboa tão bem. Não sei se chovia, mas quase senti a calçada molhada por este Outono, que não traz saudades... e traz tantas.

Depois vamos ao Terreiro do Paço comer castanhas. :)