Já a noite vai longa e a escuridão não assola a cidade. Há luz de fundo, uma luz fininha, daquelas como a adolescência que - diz a minha mãe - não é carne nem peixe. Subo as escadas já com os chinelos a fugir dos pés. Apago a luz das escadas, abro a porta do quarto e acendo a luz da mesa de cabeceira. Rituais diários que fazem da vida esta sucessão de dias, e que tornam os anos uma continuidade de quotidianos.
Apago a luz e - ainda - a cidade não dorme. A luz dourada entra pela janela no tecto e deixa adivinhar a lua cheia lá fora. Pego no telemóvel. Penso na hora do despertar. 20 minutos mais cedo para poder dobrar o 'adiar' na manhã seguinte. Aproveito, ligo-o à ficha para carregar, não vá a bateria acabar a meio do dia de amanhã. Ou melhor, de hoje. A reflexão do dia. O que fiz. O que não fiz. O que preciso de fazer. Aquilo que não quero e aquilo que não consigo evitar fazer. Planos. Sonhos. Mais um dia que passou e a vida não anda. Rodo sobre o meu próprio eixo e ponho as mãos debaixo da almofada. Adormeço.
Toca o despertador. Adio. Toca outra vez. Adio novamente. Toca a terceira. Não há duas sem três, não é verdade? Toca. Levanto-me. Corro. Casa-de-banho, quarto. Faz a cama, veste-te, come, lava a cara, lava os dentes, tens tudo na carteira? Óculos, porta-moedas, agenda, caderno de apontamentos? Telemóvel. Vá, pega na chave. Sim, aquela que deixas sempre em cima da mesa da entrada, para evitar o esquecimento. E despacha-te, senão vais chegar atrasada. Anda, rápido que o tempo não pára. E penso pelo caminho, no que tenho de fazer, e nas coisas para o fim-de-semana, e na mochila que ainda não arranjei para levar, e no equipamento para a natação que ainda está por preparar, e o jantar combinado. E páro para conseguir tirar o auricular do telemóvel. Raio de fios enrolados. Como é que é possível? E eu com tanta pressa, já em cima da hora, e a querer ouvir rádio pelo caminho e os fios todos enrolados, parecem um ninho. E o telemóvel? Bolas que nunca encontro nada na carteira... E subo as escadas, cruzo-me com pessoas, algumas tão familiares. E desço. Bolas, que agora começou a chover. E apresso o passo. E agora a calçada - que é tão linda e tão branca e tão característica e tão portuguesa - agora tão escorregadia. E atravesso a passadeira. E a estrada. E espero pelo verde dos peões, que os carros que cruzam a avenida não estão para brincadeiras. E vejo a Gulbenkian à direita. E a frutaria à esquerda. E o relógio em frente a lembrar-me que ele não pára. E já está o Bruno Nogueira a falar na rádio e eu ainda nem a meio do caminho. Abrigo-me da chuva miudinha. Aconchego o lenço ao pescoço. Fecho mais um botão do casaco. E apresso o passo. Páro na montra do quiosque. Faço a revista de imprensa. Obama na capa do Público. Entro e compro. E a Vogue fresquinha. E penso que sou de contrariedades. E de antíteses. E que até posso ser um bocadinho estranha. E agradeço. Muito Obrigada e um bom dia, sim? E passo pelo hotel, e pela farmácia metida provisoriamente num bunker, coberto de folhas do Outono que já se instalou. E tropeço num buraco. E espero pelo bonequinho verde que quando vem também apita. E atravesso o jardim, por debaixo das árvores, apressada. Dou uma vista de olhos na capa do jornal, mas não consigo deixar de reparar na feira de velharias que nem sei de quanto em quanto tempo há. Mas sei que já algumas vezes pensei nisso, e pensei em reter as datas para saber quando era. E nunca o fiz. E depois atravesso a estrada, subo os degraus e tenho de esperar que a porta automática abra que estas coisas das tecnologias não contam com as minhas pressas. E espero pelo elevador que está no oitavo. E subo. Ligo o computador e vou buscar um café. Aninho-me na cadeira. Trabalho. Trabalho. Trabalho.
Almoço rápido e fujo, corro, vou dar uma volta que isto de passar oito horas seguidas sentada dá cabo de mim. Passo apressado e fujo às pessoas, aos hábitos. Decido subir a rua em vez do costumeiro descer. Mas não posso negar a pressa, que ao almoço o relógio também não pára e há que cumprir horários. Volto ao trabalho. Telefono. Escrevo. Telefono. Atendo. Respondo. Sorrio. Berro. Ponho as mãos à cabeça. Penso na vida. Esfrego os olhos que eles nem sempre se compadecem com as poucas horas de sono. Café. Outro. E as horas que agora não passam. Os minutos que não avançam. As respostas que não chegam e eu com tanta coisa que fazer. E estou a pensar se não hei-de ir dar uma volta agora, quando o apito soar na minha cabeça a dizer que é hora de saída. Que se os horários são para respeitar, que seja à entrada e à saída. E acho que vou mesmo. Calmamente. Sem pressas. Andar descompassadamente, sem querer saber de horas. Dar uma volta, a ver se esta rotina não se apodera - além dos meus horários - da minha vida (ou será tudo o mesmo?!). Além do mais, apetece sentir o cheirinho das castanhas que não pude comer ao almoço. Não houve tempo para ficar à espera na fila com pelo menos 10 pessoas. O tempo não se compadece com essas pequenas urgências. Não se intimida. Intimida-me antes a mim que, quando sair, afinal não vou ser assim tão livre de horários. Tenho mais ou menos uma hora para esse andar descompassado. Que o relógio que tenho hoje ao fim da tarde - e que se chama natação - não espera. Mas se, neste espacinho - que é meu - perguntarem por mim, digam que devo andar por aí.
7 comentários:
Adorei Marianne..=D
A descrição do dia, os detalhes, o tempo..a "luta" contra o tempo..
Gostei muito
Bjs e Parabéns
Como eu te compreendo,é mesmo assim.
Esqueceste-te de referir uma coisa na tua rotina...mesmo com pouco tempo para fazer o que te apetece, tens sempre tempo para umas danças "Mamma mia" e "Dancing Queen". ADOROOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO
Bébé quando queremos, conseguimos ter tempo para tudo.
Mariana Tulicreme!,
e tempo para falar do Obama? Para almoçar comigo e dizer disparates?Isso sim era importante:D
Beijinhos, bebe..sinto a tua falta aqui ao meu lado..:(
sinto-te escrever escondidinha. e é tão bom apanhar-te! ;)
"Raio de fios enrolados. Como é que é possível? E eu com tanta pressa, já em cima da hora, e a querer ouvir rádio pelo caminho"
conheço bem esta mania parva, eheh. e o engraçado é que os locutores alemães também iam fazendo piadas sobre o obama.
(qualquer dia ouves as piadas do pedro de manhã nessa correria).
bom, apesar de ter gostado muuuito do texto, deixa-me dizer que me deixaste muito nostálgica. quero castanhas assim que chegar, dentro de um mês.
despacha-te, mas com calma.
Adorei o texto...e sofro exactamente do mesmo.
Mas a mehor forma de calar o tempo é dar-lhe tempo, como tu deste. Ele gosta da nossa atenção!
Um beijinho!*
Parece que te estou a ver/ouvir a dizer cada uma das coisas que escreveste...
Bjo*
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