Tive sorte: nunca fui uma criança sozinha. Sempre dividi a atenção com outras crianças que, mal ou bem, me fizeram perceber que podia ser o centro de um mundo e apenas um: o meu. Apesar de nunca me ter sentido única lá em casa, quando era criança tive direito a muitas coisas. Soprei as velas dos aniversários dos outros, depois de lhes cantarem os parabéns, como qualquer criança gosta de fazer. Tive direito a férias na praia, a um mês de estágio estival em casa dos avós, a sopa de grão de bico e mimos de longe de casa dos pais. Tive uma bolsa enorme com fecho e lápis e caneta e borracha e régua e esquadro - tudo junto - que poucos miúdos tinham lá na escola, porque o papá ia muitas vezes ao estrangeiro e comprava coisas que raramente cá havia. Fui uma mão cheia de vezes à EuroDisney - uma coisa que possivelmente todas as crianças gostariam de fazer ao menos uma vez - de autocaravana e a mamã adorou de todas as vezes, o que faz uma criança sentir-se ainda mais feliz. Tomei banho de mar e de piscina até me fartar, qual pata choca sempre na água. Fizeram-me surpresas, comemorei todos os anos com velas à conta e contadas uma a uma (tal como eu gosto, que eu odeio velas que só têm números inscritos). Brinquei muito às casinhas, e aos médicos, e às professoras e aos supermercados e aos hospitais. E fiz muitos espectáculos, e gravei concursos com o rádio que me ofereceram quando os tempos lá em casa eram mais complicados do que os de agora. Usei botas ortopédicas - feias e duras - e palmilhas para corrigir uns defeitos nos pés. Mas quando o médico viu que não resultava e me quis operar, o papá e a mamã não deixaram com medo que a infância ficasse marcada pela dor aguda nos joelhos. Aprendi músicas na flauta, e inventei letras num inglês macarrónico, com vontade de imitar os mais velhos e poliglotas, nunca sonhando que um dia eu ia perceber exactamente o que é que as palavras que nem sabia pronunciar queriam dizer. Fui Nocas para a madrinha, mana lá em casa, Miam para o Titú, Mariana na escola. Fui o Míscaro do papá. Tive pesadelos com o acidente de carro do tio Pedro e assustava-me a ideia de que poderia chegar ao dia do meu casamento sem saber distinguir a mão direita da esquerda: preocupava-me que o padre dissesse "uni as mãos direitas" e eu não soubesse como fazer. Conheci Londres, Dublin, Paris e Madrid antes de saber o que era ser adolescente e pelo meio ainda tive tempo de estudar e ter boas notas. Consegui apaixonar-me por uma profissão no meio das palavras, cuja articulação tive a sorte de ser sempre elogiada. E tive a oportunidade de poder estudar o que quis, quando quis, sempre que quis e no tempo certo. Fui uma criança calma, mas alegre e muito curiosa, sempre zelosa dos mais novos que os mais velhos sempre me ensinaram a considerar sob minha responsabilidade. Não fossem uns e outros, e ser criança podia não ter sido tão fácil. Nem tão bom. Nem tão memorável.
3 comentários:
Fantástico
lindo lindo lindo!!!!
a unica tristeza da tua vida foi teres um dia acordado e pensado q querias ser jornalista.. mas eu sofri do mesmo mal e se nao fosse isso nao nos tinhamos conhecido, ne???
beijos mil
Bonito...
Isto de ser irmã mais velha e dar o exemplo tem muito que se lhe diga!!
um beijinho!
p.s.: Míscaro? Cogumelo?!!
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