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sexta-feira, dezembro 17, 2010

retratamento

Agora estou amuada.
Trata de me desamuar se quiseres. Que a culpa foi tua.

domingo, novembro 28, 2010

D'ele

Ele tem os teus olhos, castanhos escuros. Com pestanhas compridas e enroladas nas pontas, nos cantinhos. Os olhos que pestanejam quando estás nervoso, ou quando não acreditas naquilo que estás a ouvir. Aqueles olhos que choram quando andas contra o vento frio. E o vento frio os fere e os gela, e lhes reclama as lágrimas. Tem aqueles olhos, os teus, os que te fitam sem pestanejar quando te tentam perceber.
Ele tem a tua boca rosada. Secam-se-lhe os lábios como a ti quando está frio e ele os humedece com a língua, sem perceber que aí está o segredo para não os secar. Ele tem-nos, como os teus, carnudos, ondulados, frenéticos e calmos ao mesmo tempo. Daqueles que se mexem depressa, como os teus. Daqueles que reagem ao toque com uma expressão poética.
Ele tem a tua pele pintada de pintas pretas. Tem a tua expressão de contentamento, as tuas rugas de desconfiança, o teu ar sisudo de quem não quer acreditar no toque. Ele tem a tua pele macia, a tua pele pouco enrogada ainda. Ele, como tu, reage ao toque das mãos frias e aconchega-se nas mãos quentes.
Ele tem, do lado direito do peito quando o olhas de frente, uma máquina cheia de energia que teima em nunca descansar. Tem-na ali, fechada, capaz de se proteger ao mínimo ataque. Ele, como tu, construiu-lhe uma fortaleza. Ele tem um aconchego. Como tu, ele tem um aconchego. Um olhar como o teu [o teu olhar?], uma boca como a tua [a tua boca?], uma pele como a tua [a tua pele?]. E uma fortaleza. Tal e qual a tua [será a tua?].

quinta-feira, novembro 25, 2010

oito e oito

É capicua, o número que fizeste um destes dias, como se a vida fosse um jogo de adivinhas. Tu serias uma das palavras mais complicadas e mais difíceis de dizer, pelo menos naquete tempo em que me ofereceste a BMX cor-de-rosa e preta cujos pneus eu por pouco não destruía de tanto os massacrar nas poças de água do caminho entre a tua casa e a nossa. Isto quando éramos vizinhos. Tão perto em distância, tão longe em afectos. Vocês - nem eu sonhava na altura - são os que mimam. Os que nos estragam fazendo todas as vontades, que passam os chocolates que os pais proibiram por baixo da mesa. Os que enrolam uma nota e a metem no nosso bolso das calças, mesmo que não precisemos. Os que nos contam as histórias dos disparates dos nossos pais quando eram pequenos. Todos os segredos guardados numa memória a longo prazo que quase nunca se apaga. Só que tu - nem eu sonhava - não eras isso quando moravas ali ao lado, quando podíamos ver-te todos os dias. É curioso como eu nunca percebi que tu não eras assim até ao momento em que tu passaste, de facto, a ser assim. Ninguém te ensinou a ser, e tu demoraste a perceber que os beijos e os abraços e as perguntas esquisitas não eram mais do que vontade de te sentir mais perto. Dizer-te 'olá', por estes dias, é um prazer. Porque te queixas que os anos pesam (e isso, desculpa, mas vê-se nos teus pés, que o teu corpo já não acompanha o ritmo da tua cabeça), mas não se percebe falando contigo. Percebe-se sim, a vontade que tens de inverter as coisas. Mas sei-te ainda muito pouco daquilo que quereria descobrir. Precisamos de mais horas, de mais tempo, de tantas conversas, de recuperar o caminho das poças de água e os pêssegos roubados ainda verdes. Precisamos de conversas demoradas, e de trocar ideias um com o outro. Que eu acredito que isso de trocar ideias é tão bom para quem as diz como para quem as ouve.
E que o inconformismo que escrevias no jornal quando metias as letras na máquina de escrever, tem-lo agora nas palavras. Isto de ser velho é aborrecido. Um dia explico-te porquê. Querias ser novo outra vez. E isso, aos 88, não é nenhum milagre. É de quem gosta de viver à séria.

quinta-feira, novembro 18, 2010

1/52


Os olhos na ponta dos dedos
Eu gosto muito de ler, e quando vivia na Alameda ia de autocarro para Campo de Ourique para lá, normalmente entretido a ouvir um livro. Quando dava por mim, tinha passado a paragem e já estava em Chelas. Perdi-me vezes sem conta no percurso casa-trabalho, apesar de saber de cor o caminho para o número 95 da rua Francisco Metrass, no bairro de Campo de Ourique em Lisboa. Entre 30 a 40 mil pessoas com deficiência visual procuram, por ano, a nossa ajuda. Reparamos as bengalas de cegos e amblíopes. E temos a maior biblioteca de braille do país. Temos livros portugueses e estrangeiros, e qualquer pessoa, mesmo que não seja associada, pode visitar-nos. São mais de 40 mil, entre obras em papel e em formato digital. Os livros ajudam a passar o tempo. O que é que as pessoas cegas fazem enquanto estão em casa? Ora, esperam muitas vezes o dia inteiro pela família. E tanta coisa podiam fazer. Sentir-se-iam úteis e seriam o orgulho da família. Porque eu sinto o orgulho dos meus filhos quando lêem as conquistas da associação, as minhas conquistas no jornal. Quando os meus filhos metem a chave à porta eu sei exactamente como eles vêm, como eles estão. Vejo pelo modo como eles põem a chave na porta. Vejo pelo tom de voz. Vejo pela maneira de andar, pelos passos. Eu não preciso que eles falem.
Este texto faz parte de 52 histórias do livro/agenda perpétua da ACEP e foi escrito a partir de uma conversa com Vítor Graça, da Associação Promotora do Ensino para Cegos (APEC). As histórias, contadas - e bem contadas - por mais 51 jornalistas e outros tantos fotógrafos, estão à venda online. Para serem partilhadas, como todas as boas histórias merecem.

terça-feira, novembro 16, 2010

¡Hola!

Faltava-me a inspiraçao para escrever. Mas hoje nem a falta de acentos me pára, que eu estou numa cidade que sinto minha, e ando num passeio sem calçada que parece a minha cara. Falei contigo ao telefone e contei-te da minha alegria. Acho que se me notou na voz a emoçao de voltar aqui, a um sítio que conta tanto das minhas histórias a solo. A um lugar onde eu comi tantos petiscos. A ruas que me lembram uma casa e um quarto diferentes dos que conheço agora. Quis chorar de emoçao quando te vi, tao solar, tao parecida com Lisboa. Tao à minha maneira. Tiveste hoje o poder de me revigorar, de me fazer sentir que há vida para lá da rotina, e de me trazer a vontade de escrever aqui. E isso nao era mais do que o que eu andava a precisar. Madrid.

quarta-feira, outubro 13, 2010

Chi-chi-chi. Le-le-le. Chile!

Dizer outra coisa qualquer ia estragar o dia mais importante da vida deles.
(mas que privilégio, às vezes, ser jornalista. E poder contar as boas histórias)

terça-feira, setembro 21, 2010

segunda-feira, setembro 13, 2010

Caro José,

Pensei tratar-te por você - daí o 'caro' - mas sempre achei que quanto mais perto as pessoas estiverem (mesmo no trato), menos equívocos se criam. E hoje quero conversar contigo de igual para igual - que sei que não somos -, sem grandes artifícios. Podes tirar a gravata, e tira também esse ar pesado, ajeita como quiseres o teu cabelo grisalho. Não queiras estar sempre intocável, descontrai. Podes pôr as mãos nos bolsos durante a conversa, não precisas de estar sempre com esse ar inabalável de quem tudo sabe e nada quer aprender. Hoje, vamos conversar francamente, por favor.
Quero dizer-te que o teu discurso não me comove. As pessoas não têm de comover toda a gente, é certo. Bem sei que não comovo metade das pessoas que gostaria. Bem sei que não consigo que toda a gente me oiça com a vontade e com a atenção que acho que alguns assuntos merecem, e que não tenho super-poderes que façam alguém mudar de ideias só com a força dos meus argumentos. Depende muito dos dias, dos ambientes, dos feitios...mas sobretudo dos humores. E é difícil lidar com humores, muito mais do que com gostos, com opiniões, com ideais. Os humores diferentes do nosso são difíceis de gerir (quanto mais quando temos de os coordenar com os nossos). Por isso, digo-te José: compreendo que muitas vezes sorrias e tentes camuflar a indignação que te vai na alma e os olhares críticos dos outros com essa figura seca e sem brilho, a não ser o da tua pele. Mas olha, ouve-me: as pessoas gostam de gente firme...mas gostam, sobretudo, de gente. Real. Gente que sorri, que chora, que treme a voz quando fica nervosa, que levanta o olhar quando há algo no meio da multidão que lhe chama a atenção. Gente de carne e osso, sabes?
Pois.
Isso. Gente. E depois, as pessoas gostam de gente que sabe. Não falo do saber História, ou Geografia. Ou melhor, não falo só desse Saber. Falo de conheceres Lisboa, mas quereres conhecer Portalegre. Falo de gostares de visitar as grandes refinarias de Sines, como teres curiosidade em conhecer as descobertas de uma equipa de cientistas da Universidade do Minho. Falo de te empenhares em proporcionar a 250 mil alunos do Básico a possibilidade de terem um novo Magalhães, como de estares presente na inauguração de uma plataforma de internet artesanal criada por alunos do secundário de Piódão. Falo de números - pequenos e grandes. Que sendo pequenos e grandes, referem-se a pessoas. Falo também, dos teus números. Que são os teus quereres.
Olha só: “Queremos chegar a 2020 com 40% dos cidadãos entre 30 e 34 anos com diploma, com formação de ensino superior". Pois. Eu também queria muita coisa. Mas sabes? Fez hoje quatro dias - é pouco, bem sei - que uma amiga muito amiga foi para Londres. E não é grave que tenha ido para Londres, que isso é uma aventura, e até é bom ter experiências diferentes. E o inglês bem falado e bem escrito dá sempre jeito. Não, não é esse o problema, José. O problema é que antes de ela ir para Londres - e se ter de despedir da amada Lisboa - ela estava na Alemanha. Antes disso, esteve em Bruxelas. E antes, na Alemanha. E perguntas tu: mas, e então? Então? Então que antes disso tudo, esteve cá, sim. A fundar um jornal. Um gratuito, desses a quem tu - aposto - rejeitas as chamadas quando alguém te liga. Que a propaganda não se faz nos gratuitos. Não é? E sabes quanto é que ela - licenciada, curiosa, bem formada, com tudo feito a tempo e horas - ganhava com isso? Zero, José. Zero. E ela é 5 estrelas. E não está em causa que as pessoas, depois do curso, não trabalhem de borla por uns tempos. Que a gente sabe que os cursos não dão mais do que coordenadas para a prática que se há-de treinar na profissão. No dia-a-dia. Mas José, ela não é a única. E sabes que mais, ela é já uma em muitas e muitos que estudam cá, são os melhores nas respectivas áreas, e além de todas as qualidades têm a coragem - sublinho, a coragem - de procurar noutros países aquilo que o deles - o tão amado país deles - não é capaz de lhes dar: condições para poderem viver nele e contribuirem para que ele cresça à medida que eles vão crescendo também. Vais perdê-los a todos. E qualquer dia não vais reconhecer a pátria. Porque a pátria é a nossa língua. E a nossa língua anda espalhada pelo mundo. Um dia destes, não vai sobrar um para contar a história.

quarta-feira, setembro 01, 2010

Sept.

Antes de perguntares como acaba, preocupa-te com o início.

terça-feira, agosto 31, 2010

Era um verbo


Começou com um susto. Estremeceu como se lhe roubassem uma coisa preciosa. Depois questionou. Perguntou porquê. Por quê. Para quê. Fez mil insinuações, esperou para ver, atropelou os pensamentos com as palavras. Escreveu uma carta à mão. Dançou salsa em pensamento. Bebeu caipirinhas. Depois apanhou sol, apanhou uma virose, constipou-se, escaldou a pele. Encheu a cabeça de areia. Sacudiu a areia de entre os dedos dos pés. Barrou-se de creme cheiroso e petiscou. Falou mais cara-a-cara do que ao telefone, comprou bilhetes de comboio, foi pendular entre idas e voltas e voltas e idas. Chorou salgado e riu doce. E mergulhou salgado. E passou por água. Doce. E cantou parabéns, decorou letras de músicas, comprou bilhete para concerto. Leu livros, e revistas, e jornais. E também fingiu que leu livros, e revistas e jornais, enquanto observava quem passava, escondida entre as páginas e os óculos de sol. Ficou a ver o mar até anoitecer, e fugiu da nortada. Tomou banho frio. Dormiu mais. Acordou cedo e andou a pé todos os dias. Teve saudades. Sorriu. Agostou. Que - no início - era um verbo. Agosto.

quinta-feira, julho 29, 2010

(dei com isto) aqui ao lado*

Muito falamos nós das festas a que vamos, do que comemos ontem naquele jantar para que fomos convidados ou das caipirinhas que bebemos na noite de Carnaval. Muito vamos nós à missa, muito nos queixamos da vida regrada, sempre igual. Muito praguejamos nós que os anos passam e nos sentimos envelhecer sem que nada façamos para poder evitar a passagem inexorável do tempo. Sem dizer até amanhã ao namorado com quem estamos chateados. Ou sem ligar à avó, que já não vemos há meses, porque saímos demasiado tarde do trabalho. Ou demasiado moídos do ginásio. Ou demasiado ocupados da vida. Dos problemas que vemos em cada esquina. Das dificuldades que se nos atravessam no caminho. Permanentemente. Sem avisar nem dar descanso. Muito nos queixamos nós da vida calma, da chuvinha irritante que nos dificulta as gargalhadas – muito mais fáceis quando o sol quentinho nos aquece a cara por mais que sejam oito da manhã e esteja frio. Pouco agradecemos por estarmos assim. Só com a chuvinha. Só com o frio suportável. Só com uma barriguinha cheia. Só com um trabalho que nos preenche. Só com o que comer. Só com uma conta bancária que nos deixa ir ao cinema. E ao teatro. E jantar com amigos. E almoçar fora de vez em quando. E comprar umas sandálias da colecção de verão (mesmo sem a chuva ainda ter dado descanso). “Só”. Só que aqui ao lado, não. É diferente. Mesmo aqui ao lado. Só isso.
*Na Nossa Agenda

terça-feira, julho 20, 2010

Mexer no passado

Como diz o pugilista, antes dar que receber.

segunda-feira, julho 19, 2010

naquela da amizade

Domingos.

Tantas saudades que eu tenho de ti.

domingo, julho 18, 2010

Do cabo que é verde

Sorri-lhe a medo, que nestas coisas nunca se sabe para o que se vai. Eles são espontâneos e têm pouco medo de ferir susceptibilidades. Retribuiu, como se fosse esperado que eu o chamasse pouco depois para ao pé de mim. Veio rápido, meio saltitante, com umas sandálias que acendiam e apagavam umas luzes nas solas. Contornou as cadeiras à volta da mesa e sentou-se ao meu colo. Ia escorregando vezes sem conta, que os calções de sarja beges não conseguiam parar quietos em cima do meu macacão de tecido escorregadio. E carregava-me nos joelhos, à confiança, a ver se eu o resgatava da queda a tempo de não ir parar ao chão. Falámos dos Gormitis, dos Transformers e do Faísca, o herói do Carros. Contou-me que tinha andado toda a tarde a brincar com a "Carol que é de chocolate". Que o pai não estava a jantar ali com os amigos da mãe. Que estava ainda a trabalhar. Falou-me com o sotaque do Porto e disse-me que o clube era o azul e branco. "Mas quando estriver contigo souê do Benfica, está beie?". Está bem, Rafael. Andámos a brincar com o camião dos micromachines, e com um helicoptero invisível que era não mais do que um papel amachucado. Deu-me um beijo de despedida e acenou-me com a mão pequena.

Castelo de cartas

Custa à brava a construir. E cai num instante. E não é nada catita. É terrível.

Giro nas horas

A verdade é que gosto de ti porque é fácil ser melhor contigo. Porque me fazes querer ser mais, estar mais presente, saber mais coisas, ouvir melhor. Gosto de ti porque é bom reouvir-te. Porque me encanta o lufa-lufa da tua vida. Porque as tuas gargalhadas são tão apetitosas. Porque escreves muito bem. E cheiras muito bem. E porque falar contigo sabe-me a pouco. Porque és teimoso. Perdão, gosto de ti porque és muito teimoso. Gosto de ti porque às vezes adivinhas. Porque és giro nas horas. E porque quando falas de madrugada nem se te nota o sono na voz. E se te parece pouco que goste de ti assim, gosto de ti porque acordas quando ainda o dia é noite. Gosto de ti porque consigo fazer-te rir, e porque me dás conversa. Da boa. Gosto de ti porque me contas os teus segredos. E se os dias passam depressa, contigo ainda mais, que a conversa de telefone não me cura as saudades que tenho de não te ver, nem te sentir, há tempo demais.

quarta-feira, junho 30, 2010

Cá, aqui

So I say run, run, sparkling light,
Have your fun and then come home at night,
I’m sure you’ll tell me something new,
Things you did and thing you do,
Yeah I can see the world through you.

terça-feira, junho 29, 2010

A tua praia

Não sou, sei bem. Não te faço bater o coração mais rápido, nem te tiro a respiração ao passar. Ficas para aí, deitada na toalha, à espera que o sol venha a seguir à última nuvem. Mas de repente a noite volta outra vez, e o dia é mais curto, e estás outra vez sozinha. Pega-me na mão. Pega-me na mão, já disse. Entrelaça-me esses dedos uns nos outros e não te sintas mais sozinha, que estás aqui só para ti. Não desconfies dos que te passam a mão pelo cabelo, te elogiam a escrita, te gabam a voz. Acredita no que te dizem, que tu és especial, tu és única, tu és bestial. Não contraries o coração empedernido que deixaste de sentir. Mesmo que a cabeça feita água queira contrariar-te os dedos que teimam em escrever as mensagens no teclado a que tiraste o som. Ou é, ou não é. Agora, isto de quereres fazer bater o coração com meias massagens cardíacas sem aplicação de choques eléctricos, não. Que o coração de pedra não aguenta palavras meias. Só vai tornar-se mais duro.

E est'agora.

Não há dois, sem três.

segunda-feira, junho 28, 2010

D de despedida

Soletra a letra 'd' de despedida. Sabe que a voz límpida, ganhou-a ao microfone no país dos érres e dos ches. Tem a certeza que é certo o que vai fazer a seguir, mas custa-lhe voltar. Sobretudo pela despedida. Era mais fácil não ir agora outra vez, era mais fácil mandar uma mensagem a agradecer a presença. E não ter que dar mais uns abraços e uns beijos ao Reno. Como se se tratasse de uma amiga qualquer, no aeroporto. Tinha sido mais fácil, decerto, sem os crepes com Nutella e sem o vinho quente. Ou sem a insistência de quem já tinha saído de casa apesar das saudade. "Anda, preenche os papéis. O que é que cá ficas a fazer, hum?". A atitude - camuflada de medo de ir - sempre foi o seu forte. Tem andado de um lado para o outro como ninguém, sem ninguém. Com toda a inveja do mundo, que conhecer e falar e perguntar é uma paixão conjunta. Tinha sido mais difícil sem os crepes de Nutella e sem o vinho quente. O frio tinha sido mais letal e condensado. As saudades mais agudas. Fosse tão mau assim, e não custaria a despedida. Fosse tão doloroso assim - e sabe-se que foi, e nem é isso que está em causa, que quando as saudades apertam ninguém sabe como é que o coração sobrevive ainda - e não estava a preparar-se para partir, já. Que ainda não é desta que volta de vez.

domingo, junho 27, 2010

Fera



Estava chateada, com cara de poucos amigos. Amuada que só. Insuportável. Discuti, praguejei baixinho, sempre a olhar as pessoas nos olhos com ar de quem tem toda a razão do mundo. Refilei por pensarem que sabem tudo da minha vida quando nem eu sei bem. Pensam que sabem tudo. Como eu. E tu, sem saíres do tom, chamaste-me fera. E deste-me uma festa na cabeça.

sexta-feira, junho 18, 2010

"Não é tanto o ser que me preocupa, mas o deixar de estar. É pensar que um dia estou. E que outro dia já não."


O pior que a morte tem é que antes estavas, e agora já não estás. Eu digo de outra maneira, aquilo que um dia a minha avó disse. "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". E...ela não tinha pena de morrer. Ela tinha pena de já não estar, no futuro, para continuar a ver esse mundo que ela achava bonito.

Nas chegadas

Não tinha mais de metro e meio. Uns cinco, talvez seis anos. Estava agitado, não foi preciso muito para perceber que estava nervoso, ansioso. Estava com uma mulher morena e muito magra, com as unhas impecavelmente pintadas e o cabelo impecavelmente esticado, pintado de preto. Chamou-lhe mãe, enquanto apressava a pintura de um papel quadriculado, com letras desenhadas. Olhei por cima do jornal a tentar disfarçar a minha curiosidade de quem espreita sem autorização, só por mera cuscuvilhice. Amo-te muito, pai, lia-se em letras gordas, que pintava apressado antes de ele chegar. E ele chegou mais cedo do que se esperava, camisola com capuz verde e mochila às costas, como quem parece vindo de uma aventura. Abraço apertado que exigiu baixar a cabeça debaixo do corrimão de metal, e um olhar curioso sobre o que se passava ali, enquanto ela pintava depressa o que faltava, com a ajuda dele, que sentia o tempo a passar e tentava disfarçar o papel ali estendido e sob o meu olhar atento, cada vez mais curioso. Cada vez mais evidente. Fechei o jornal, li a contracapa. E eles a colorirem o desenho com lápis de cor. Letras gordas pintadas e folha dobrada, o miúdo entrega ao pai o papel quadriculado com a mensagem de boas-vindas. Ela tira do saco de papel um boneco de gesso pintado - uma miniatura de jogador de futebol - e esconde-o para que ele não o veja até ele lho mostrar. Um trofeu de orgulho por um campeonato infantil ganho. E ele dá-lhe um abraço. A seguir, um diploma da escola de futebol do Benfica. E outro abraço. Finalmente, um pacote de leite simples ainda com a palhinha colada. Outro abraço. É bom tê-los aqui. Pequeno-almoço dividido no aeroporto.

quinta-feira, junho 17, 2010

Ciência

Sentada à beira da piscina naquela tarde de Junho pouco Verão e por entre pensamentos mais ou menos desorganizados e sms que a fizeram rir, ela viu. Amores perfeitos. Num vaso. Mesmo ali, debaixo do nariz dela. À distância de um olhar.

domingo, junho 13, 2010

Ora, est'agora.

Já percebi que estiveste a reler as mensagens que trocámos. Imagino-te, sentada aí num canto, computador nos joelhos, a tentar metodicamente ordenar por datas o que aconteceu. Depois abres outra janela, irritas-te com a lentidão do computador (que a propósito devias mandar formatar porque não sabes como isso se faz) e praguejas sem dizer uma palavra enquanto escolhes uma música qualquer suficientemente deprimente. Rodas e deitas-te na cama que ainda está por fazer e, de barriga para baixo, assentas os cotovelos no colchão. Parece que te estou a ver...
Relês à procura de um indício, de um qualquer pormenor que te faça perceber o que foi, por que foi que naquele dia eu decidi acabar uma coisa que, dizes, nem sequer tinha começado. Sorris com a conversa trocada em meia dúzia de linhas e voltas a reler. essas coisas não se agradecem. repetem-se. Franzes a testa. Há qualquer coisa que te escapa e detestas isso. Porque metodicamente, pelas tuas contas, tudo resultaria depois de um quando quiseres. Mas não és só tu a caixa de surpresas. Ironia do destino, comigo quase nada é o que parece.

sábado, junho 12, 2010

Na noite das cores,

ainda vamos de dia para apanhar a última luz de um sol preguiçoso que mal aparece...desaparece. Vemos as cores das flores de papel dos manjericos misturada com o cheiro das sardinhas assadas que se entranha no cabelo e lá fica...qual segredo difícil de esconder. Andamos pela calçada como em nenhum outro dia do ano, para cima e para baixo, sem perceber bem se subimos ou descemos, nem se estamos ou não acima do castelo. Parece que estamos dentro de um daqueles labirintos difíceis de chegar ao fim, porque nenhum mapa é melhor do que o olfacto e nenhuma mensagem escrita funciona tão bem como um grito no meio de um bailarico. "Olá, tudo bemmmm?". Encontramos gente que nunca mais vimos, gente que nunca cumprimentámos com beijos e abraços. Que nas noites mágicas se transformam em cúmplices de festa. De uma festa de uma cidade que deixa de ser branca para se transformar num cenário de cores e cheiros que só acabam quando, depois de o sol nascer, os mais resistentes encostam a cabeça na almofada. Mais um ano, e tantos Santos para contar.

terça-feira, junho 01, 2010

Míscaro


Tive sorte: nunca fui uma criança sozinha. Sempre dividi a atenção com outras crianças que, mal ou bem, me fizeram perceber que podia ser o centro de um mundo e apenas um: o meu. Apesar de nunca me ter sentido única lá em casa, quando era criança tive direito a muitas coisas. Soprei as velas dos aniversários dos outros, depois de lhes cantarem os parabéns, como qualquer criança gosta de fazer. Tive direito a férias na praia, a um mês de estágio estival em casa dos avós, a sopa de grão de bico e mimos de longe de casa dos pais. Tive uma bolsa enorme com fecho e lápis e caneta e borracha e régua e esquadro - tudo junto - que poucos miúdos tinham lá na escola, porque o papá ia muitas vezes ao estrangeiro e comprava coisas que raramente cá havia. Fui uma mão cheia de vezes à EuroDisney - uma coisa que possivelmente todas as crianças gostariam de fazer ao menos uma vez - de autocaravana e a mamã adorou de todas as vezes, o que faz uma criança sentir-se ainda mais feliz. Tomei banho de mar e de piscina até me fartar, qual pata choca sempre na água. Fizeram-me surpresas, comemorei todos os anos com velas à conta e contadas uma a uma (tal como eu gosto, que eu odeio velas que só têm números inscritos). Brinquei muito às casinhas, e aos médicos, e às professoras e aos supermercados e aos hospitais. E fiz muitos espectáculos, e gravei concursos com o rádio que me ofereceram quando os tempos lá em casa eram mais complicados do que os de agora. Usei botas ortopédicas - feias e duras - e palmilhas para corrigir uns defeitos nos pés. Mas quando o médico viu que não resultava e me quis operar, o papá e a mamã não deixaram com medo que a infância ficasse marcada pela dor aguda nos joelhos. Aprendi músicas na flauta, e inventei letras num inglês macarrónico, com vontade de imitar os mais velhos e poliglotas, nunca sonhando que um dia eu ia perceber exactamente o que é que as palavras que nem sabia pronunciar queriam dizer. Fui Nocas para a madrinha, mana lá em casa, Miam para o Titú, Mariana na escola. Fui o Míscaro do papá. Tive pesadelos com o acidente de carro do tio Pedro e assustava-me a ideia de que poderia chegar ao dia do meu casamento sem saber distinguir a mão direita da esquerda: preocupava-me que o padre dissesse "uni as mãos direitas" e eu não soubesse como fazer. Conheci Londres, Dublin, Paris e Madrid antes de saber o que era ser adolescente e pelo meio ainda tive tempo de estudar e ter boas notas. Consegui apaixonar-me por uma profissão no meio das palavras, cuja articulação tive a sorte de ser sempre elogiada. E tive a oportunidade de poder estudar o que quis, quando quis, sempre que quis e no tempo certo. Fui uma criança calma, mas alegre e muito curiosa, sempre zelosa dos mais novos que os mais velhos sempre me ensinaram a considerar sob minha responsabilidade. Não fossem uns e outros, e ser criança podia não ter sido tão fácil. Nem tão bom. Nem tão memorável.

domingo, maio 30, 2010

Muito provavelmente serão felizes para sempre

Sui generis. Foi isso que foi. Não houve convites, nem vestido de princesa branco imaculado, nem uma plateia de convidados a encherem uma igreja da Baixa. Não houve copo de água, nem banda a tocar na festa, nem sequer houve acólitos a ajudar o padre a segurar a Bíblia, na hora de ler o Evangelho aos noivos. Os convidados contavam-se pelos dedos de duas mãos, o coro pelos de uma e os padrinhos foram a família. As palavras foram sentidas, houve enganos e sorrisos, e houve também tempo para corrigir o que estava mal, tempo para fazer as coisas com calma, de tão descontraído o acontecimento. Sui generis, dizia ela. E foi. Cantou-se com alma, abraçou-se com carinho, beijou-se com gratidão. Pediram-se pétalas e arroz no café da esquina, bebeu-se água de garrafas alheias, e houve desconhecidos a testemunhar o momento, que entravam na igreja ao mesmo tempo que decorria a cerimónia. Quebraram-se as tradições: o véu desapareceu, a liga não existiu. Mas houve um sol quentinho a receber os noivos debaixo da chuva de pétalas amarelas e vermelhas. E houve um carro barulhento com música. E houve turistas nas ruas do Chiado a tirar fotografias. E houve amigos que "eram capazes de aparecer" e que "apareceram" mesmo, entre a areia da praia e a calçada portuguesa. E houve também um brinde aos noivos, e promessas de amor eterno - que há tradições que nunca podem ser quebradas. Foi especial por ser assim. Simples. E porque o nervosismo estava lá, como em todo o lado onde se fazem promessas que se querem ver cumpridas. Sui generis.

sexta-feira, maio 28, 2010

terça-feira, maio 25, 2010

toda a gente foi domingo (ao menos) uma vez.

Pega no copo de pé alto - um clássico que lhe custou barato naquela loja de antiguidades da esquina - e bebe o último trago do vinho branco que ainda está fresco. Não sabe bem como é que o vinho ainda está fresco, que é Agosto, está calor, e o tempo quente não é amigo das coisas frescas. Talvez seja dela, e da conversa saborosa à volta daquela mesa redonda naquele fim de tarde. Não nesse, mas daquele que nesse se lembra, que as recordações também são doces e frescas, como os dias presentes ou ainda aqueles sonhados que ainda não aconteceram. Ali sentada, sozinha, sente-se ainda acompanhada daquelas conversas. Da vida dos que estão longe mas que dão notícias por telefone. Dos outros, tão perto, mas que lhe escrevem cartas todos os meses, mesmo que combinem cafés. E dos outros, aqueles de quem nunca mais teve notícia mas que fazem e sempre farão parte das histórias da vida dela. Ali, sentada, inspira-se nas recordações que permanecem, e bebe o último trago, sem perceber que o vinho já aqueceu com o calor do ar, e que ela - tão preocupada com o passado comum - envelheceu sem dar por nada.

quinta-feira, maio 20, 2010

Da minha cor favorita

Est'agora

Às vezes preferia que não tivesse sido assim. Não dar por ti quando coincidimos nos sítios. Preferia que este radar que não falha falhasse de quando em vez. De vez em quando. Queria não te ter visto naquela calçada íngreme, tu a subir, eu a descer. Continuei a beber a capirinha - como se a lima (ou será limão dos brasileiros, dos verdes) me ajudasse a esquecer que naquele dia conversámos até de madrugada.
Preferia não ter visto quando passei - sorrateira - por trás de ti, noutra noite qualquer. Uma ventania grande na rua, e nós ali - coincidentes - mais uma vez. Preferia ter-te passado ao lado, preferia que não me tivesses sentido passar quase colada a ti (e esse radar que não falha). Preferia, às vezes, não ter coincidido naquela noite em que as despedidas foram as boas-vindas que num instante se tornaram despedidas. Ou então preferia só conseguir fazer-me notar sem notar eu que estavas também. Distraída. Acho que é isso. Preferia uma distracção.

quarta-feira, maio 19, 2010

Razões, ao ritmo do djambé

Falta-nos por aqui uma grande razão
Como dizia o Cesariny
Uma verdade para qualquer estação


Falta-nos um motivo, um anseio
um desejo fortíssimo,
Um desígnio, uma visão

Falta-nos um punhal brilhantíssimo
Para liquidar esta vida de conformismo
De rotina sem ambição

E falta-nos uma espingarda
Para apontar ao manto da noite
E rasgar estrelas na escuridão

Falta-nos um visionário
Que traga o futuro nos olhos
E a cara pintada de carvão

E falta-nos um gato persa
Que seja tão sábio como os sábios
Quando sustém a respiração

Falta-nos um garfo de aço holandês
Com embutidos de mármore
Que diga poemas em alemão

Falta-nos um Kant, um Locke
Um Aristóteles, um Sócrates,
Um Newton, um Platão

Falta-nos acabar com os burocratas
Fundar uma não igreja
E pôr no altar a imaginação

E falta-nos uma pianista que toque
Bach, Mozart, Chopin
De forma perfeita com uma só mão

Falta-nos brilho, noite, lantejoulas
E uma inesperada mulher-palhaço
Que nos faça rir até à exaustão

E falta-nos um jardim humanológico
Repleto de corruptos e assassinos
Comidos dia a dia por um leão

Falta-nos um relógio que não nos dê ordens
Um barco que seja um jardim
E um zeppellin que só ande no chão

Falta-nos dedos para tocar o invisível
Todas as palavras ainda por dizer
E uma imensa coragem no coração

E falta-nos ter o peito muito aberto
A tudo o que seja talento, novidade,
Diferença, inovação

Falta-nos fazer o exercício diário
De andar de bicicleta num arame esticado
Entre dois prédios em construção

Falta-nos sobreviver sem telemóveis
Automóveis, sacos de plástico,
Ipods, twitter e sobretudo a televisão

Falta-nos fazer filhos aos magotes
Mas não para garantir a segurança social
nem os educadores do ministério da educação

Falta-nos esquecer todas as fronteiras
Instalar alarmes, os barcos da marinha
Sossegar o nosso medo da imigração

Falta-nos filosofar socraticamente
Sobre negros, amarelos, mulatos
E os benefícios da miscigenação

Falta-nos uma bússola, um sextante
Um astrolábio, a rosa dos ventos
para nos ajudar na navegação

Falta-nos uma mesa de pé de galo
Que se levante no ar e voe
Quando o debate se transforma em discussão

Falta-nos discursos de jazz no parlamento
De Coltrane, Milles Davis, Thelonius Monk
Em vez de Governo e oposição

E falta-nos fazer algo verdadeiramente original:
eleger um sonho para nos governar
Em vez de uma desilusão

Até lá, como dizia o Cesariny
Falta por aqui uma grande razão!
Nicolau Santos

segunda-feira, maio 17, 2010

O dia do ramo da espiga

"Bom dia", dizia ela do alto do metro e meio, sapatos de verniz altos e bicudos, próprios de uma professora primária. Respondiamos, já de pé e em coro "Bom dia, sra. professora", um hábito criado desde o primeiro dia, sem objecções (que em 1991 não havia quem refilasse com os professores). Anunciava que depois do intervalo grande - onde corríamos por baixo do chorão (que diziam ter escorpiões) e fingíamos ser super-mulheres no meio dos rapazes que não nos ligavam nenhuma nem se deixavam distrair no jogo de futebol - íamos apanhar a espiga. Que era dia da espiga. E nós - que a memória é curta e comprida - não nos lembravamos bem o que isso queria dizer. O intervalo ainda dava margem para mais uma passagem de modelos - e para roubar mais umas flores de maracujá ao jardim da D. Madalena no Casaleiro (que nunca fez queixinhas quando encontrava a minha mãe no supermercado).
Dois a dois - meninas com meninas e meninos com meninos - seguíamos por caminhos de cabras a tentar apanhar as papoilas mais viçosas, e as espigas mais bonitas. Margaridas, e "o teu pai é careca?" e mais outros jogos que envolviam namorados, e amoras, e quantos tens e quantos queres e se queres ou não queres. Não quero não. Do Matão para o bairro Mãe de Água são dez minutos de distância. E um acampamento de ciganos com a roupa lavada e estendida ao sol - que seca com o vento - onde os cães ladravam quando passávamos. E uns caminhos que já nos eram familiares ao passarmos por lá (e que agora, talvez já não reconheça, que há tantos anos não passo lá). E depois, raminhos bem feitos, escrevíamos uma frase bonita para entregar - qual presente que agora poucos dão valor - quando nos fossem buscar para almoçar.

quinta-feira, maio 06, 2010

Amor à primeira vista

É difícil explicar o que aconteceu. Foi tudo tão rápido e imperceptível. Sei que nem sabia o teu nome. Apresentaram-te como sendo um todo, não um nome só. Diziam que eras outra coisa, que eras ousado. Destemido. Fresco. Jovem. Completamente diferente dos outros.
Eu acreditei porque os que já te conheciam falavam maravilhas de ti. E eu decidi arriscar. Deixei o ceptismo de lado e, qual aventureira, deixei-me levar como fazem todos os apaixonados. Ainda sem te conhecer pessoalmente, perguntava por ti, preocupava-me contigo. E lembro-me que até sonhei contigo algumas vezes, nas noites antes do derradeiro dia. Conheci-te numa sala cheinha de gente que comentava o teu aspecto baixinho. E depois alto, ao microfone, para toda a gente ouvir. À primeira vista achei-te diferente, sim. Parecias luminoso, apesar de cinzento por dentro. Mas como toda a gente, pensei logo poder-te mudar, como se a mudança não partisse de ti, mas de mim. Mas aos poucos, comecei a dar-te espaço, e a por-me à vontade. E comelámos a conhecer-nos melhor, a conversar mais. Vimos que partilhavamos gostos, interesses... que gostavamos das mesmas cores, que coincidiamos nos lugares. Num instante, comecei a pensar em ti a toda a hora. Falava de ti a toda a gente. E sempre que me aproximava, o coração batia mais depressa e sentia borboletas na barriga quando te via. E toda a gente me perguntava quando é que te conhecia, tal era a excitação. Começaste a parecer-me mais luminoso, mais ousado. Deste-te a conhecer, mostraste-me outra maneira de ver as coisas. E começámos a falar da mesma maneira, a usar as mesmas expressões, a rir das mesmas piadas, como gente que passa muito tempo junta e se conhece como a palma da mão. Sabes? E depois o tempo foi passando rápido, as provas sendo ultrapassadas. Grandes novidades, pequenos segredos, montes de coisas partilhadas. Quando dei por mim estava apaixonada e já não me imaginava sem ti. Passaste a fazer parte do meu dia-a-dia, da minha vida, a condicionar as minhas escolhas. Abdiquei de tempo para estar contigo, estiquei os dias para poder dar-te atenção, desdobrei-me em cuidados quando te senti mais frágil, apoiei-me no teu ombro quando me apeteceu chorar. E não é isso o amor?
É difícil explicar como isto tudo aconteceu. Porque a maior parte das paixões não se explica. Acontece. Num instante. Tão rápida, veloz, inexplicável, imprevisível. Só sei que quando me dei conta, era impossível voltar atrás. Há um ano que preciso de ti todos os dias. Coisa boa, esta.

Olha


Só para avisar que tenho mau feitio, que posso assustar, que me apaixono facilmente, que não sei onde isto vai dar. Nem quando, nem como, nem se vai dar, de todo. Que sou muitas vezes menos do que queria ser, e outras tantas mais do que alguma vez imaginei. E que ainda não te dei o abraço que queria. E isso faz-me sentir a tua falta. Além de tudo o resto que ficou por fazer.

domingo, maio 02, 2010

É desmedido, bem sei. E sempre me ensinaste que tudo o que era demais era mau. Mas gostar de ti de maneira desmedida - sei eu - nunca é demais. Sabes porquê? Porque nunca é suficiente gostarmos de quem nos quer bem. E de todas as vezes que me senti sozinha, tu estavas lá. E de todas as vezes que precisei de um abraço, tu deste-mo. E de palavras bonitas, e de uma palmada, e de uma festa no cabelo, ou de um beijo na testa.
Não és perfeita: já te vi chorar de tristeza, emocionar de alegria, gritar de ódio, sorrir de nervoso, dizer não por capricho, torcer o nariz de desconfiança. Já deixaste de me falar uma vez. Já te abracei quando não conseguiste deixar de fumar, já te fiz massagens nos pés, já te pintei as unhas e já cozinhei para ti. Já nos zangámos algumas vezes, já gritámos uma com a outra, e já chorámos por termos gritado uma com a outra.
Sei a tua voz de cor, e reconheço há anos a maneira como tosses. Tanto que quando passavas no corredor da escola, dizia baixinho que eras tu que estavas a passar. Nunca mentes e isso é bom. Dás o exemplo, elogias os bons feitos e és a primeira a criticar aquilo que fiz mal. E sei que posso contar sempre sempre, sempre contigo, que tenho a certeza que não me vais falhar nunca. Porque se não sei onde vou acabar, sei muito bem de onde vim. E isso ninguém nos tira. Nem a ti, nem a mim.

sábado, abril 10, 2010

Pátria

Trailer Cinema "Pare, Escute, Olhe" from Pare, Escute, Olhe on Vimeo.


Do país que nos acolhe e que somos. Da mentalidade tacanha, da saudade tramada, do pessimismo latente, do medo de arriscar. Do querer mais parecer do que ser. Da vontade de ir ao cinema e ver com olhos meus as histórias que outros viram, contadas em movimento e em melodia. Por mais que elas sejam de outros, são nossas também.

terça-feira, abril 06, 2010

Poesia

segunda-feira, abril 05, 2010

Páscoa

A porta, encostada, nem deixa adivinhar o que tem dentro se já não soubessemos. Vamos visitar-vos, e ela senta-se na beirinha da pedra cinzenta com os vossos nomes escritos, com a letra que ele escolheu. Simples. Passamos as jarras por água, movimento feito de cor sem que nunca ninguém nos tenha ensinado. Aprendemos de ver. A esponja cheia de água, verde, dá de beber á verdura e às flores cor de salmão que pomos na jarra de vidro. Vão ficar ali uns dias. E a primavera que tarda vai fazer o favor de não as secar tão cedo, que bom.
E ela ali sentada bebe das histórias que lhe contavam um e outro, e das que viveu convosco. E passa por água a pedra que ficou meia suja das flores e da confusão do arranjo. E num instante, naqueles filmes mecânicos que a cabeça faz, passam imagens em flash de momentos-chave. Aqueles dias de praia compridos, os aniversários onde nunca faltava ninguém. Os Natais cheios, as buscas pelo Pai Natal, o perú a tostar no forno de lenha da padaria que abria de propósito para lá irmos. A ceira na praça, carregada de legumes, os sapatos no chão do carro, dentro do saco de plástico, que calçavas à pressa e que substituiam os chinelos com que conduzias. E os óculos, pendurados ao pescoço, cheios de farinha caída dos cozinhados. O rosbife acabado de fazer. A sopa de grão-de-bico feita por encomenda. E os pães passados a ferro. Ai os pães passados a ferro. É nestas alturas que mais se sente a vossa falta. Quando entramos em casa e os quartos estão frios porque ninguém veio antes para acender a lareira. Ou quando não chegamos a tempo da cruz porque ninguém ligou a avisar que ela lá vinha. Ou então quando não há pão de manhã, nem beatas na lareira, nem sequer baton nos lábios nem verniz vermelho nas unhas. E já ninguém chama "canina" nem "araújo" quando precisamos de vocês. E cai-me uma lágrima matreira quando me lembro o quanto dava para vos pedir um conselho, para vos roubar um abraço. Para ouvir uma piada tua, avô. Ou para sentir o cheiro da avó outra vez.

quinta-feira, março 25, 2010

Sei lá

Não sei se grite ou se sorria de nervoso. Não sei que faça perante este irritante alvoroço. Não sei que faça agora. Se rio ou se choro. Se guardo para rir mais tarde, se vivo agora para não esperar. Não sei que faça - sinceramente. Se corra rápido ou disfrute lentamente. Que isto de fazer no momento pode ser anseio, pode ser tormenta, pode ser porque sim. Não sei - realmente que faça - de mim, de ti, de nós. Sei que estou baralhada, cansada, gasta. De pensar sempre e tanto. E permanecer. A sós.

segunda-feira, março 22, 2010

sábado, março 20, 2010

Floripa

Havia lá um calor bom, daqueles que aquece a pele só do contacto, mal se sai do avião e o ar condicionado desaparece. Era assim calmo como a infância, de uma calma que se torna hábito tão rapidamente como nos habituamos a qualquer coisa boa e de que sentimos que sempre estivemos à espera. Havia lá muito verde, entre montanhas, florestas, t-shirts e havaianas, com a bandeira do Brasil. Havia obras em Copacabana, e no Leblon, e no caminho para o aeroporto Tom Jobim - e como me encantou o nome do aeroporto - que preparam o país para o que aí vem e para tudo o resto. É um povo virado para o futuro, pessoas preparadas para receber. Contaram-se histórias de produção de ostras na casa-trabalho da dona Gioconda, e do Niemeyer e de uma cidade que ele não construiu. Contou-nos a Helena, que nos recebeu entre doces e chás quentes e frios. Numa pasta, entre capas de plástico, contou-nos a história de um projecto feito e desenhado ao pormenor, e que só o pai dela cumpriu. E disse-nos que a pele pendurada na lareira da pousada dos Chás fora trocada, em tempos, por uma garrafa de chachaça brasileira, numa caçada em que o negócio foi feito entre o tio dela e índios. E depois metemo-nos mais uma vez na carrinha do seu Octávio - nem sei quantas vezes nos metemos naquela carrinha - e seguimos um caminho que parecia que não acabava nunca mais. E foi um amor que senti à primeira vista, uma familiaridade com o desconhecido que nunca imaginei. Foi sentir-me em casa e querer voltar rápido e cedo, que já tenho saudades do "nossa, minina" da Carla Paulista, ou das reflexões com selo "banana reflexiva" do Richard que desenhava tudo quanto via e ouvia. Há histórias que vou resgatar com o tempo. Outras que vão ficar comigo para sempre. Foi bom, tão bom, que tenho mesmo de voltar.

sexta-feira, março 19, 2010

Father's eyes

Toda a gente diz que tenho os olhos iguais aos teus. Pode ser verdade, mas não é só isso que interessa. As pestanas compridas, herdei-as com certeza de ti - não restam dúvidas - assim como o cabelo muito escuro que tanta gente insiste ser preto. E que eu insisto ser exactamente da mesma cor que o teu: um castanho escuríssimo. Gostava de te ter conhecido mais quando era pequena, e quando tinha todo o tempo do mundo para falar-te de mim e dos meus segredos minúsculos a que eu dava a maior das importancias. Mas nessa altura tu estavas pouco, trabalhavas fora e o tempo foi passando. Nunca foi difícil lidares comigo, bem sei, que eu sempre te obedeci. Por isso, talvez mesmo só por isso, seja difícil para ti que eu não esteja sempre, como sempre estive, debaixo da tua asa. Como quando me arranjavas o pão com manteiga que ficava com o cheiro do teu after-shave entranhado e parecia que eu estava a beber perfume. Tens as mãos lindas - nunca te tinha dito, certo?. E sei que também sentiste que o passado tinha sido uma perda de tempo quando, naquela viagem para o Alentejo, falámos de uma vida inteira em duas horas e tal. A nossa relação é intuitiva, é compreensível, é simples e meiga e carinhosa. Gosto muito dos teus beijinhos. E gostava ainda mais que se multiplicassem por infinitos. Só que nem tudo é como nós queremos, paps. Mas sabes, há uma coisa que nunca vai mudar. Os meus olhos vão ser sempre iguaizinhos aos teus.

quarta-feira, março 17, 2010

Início

Falava-te de como era difícil começar. Falava-te não. Falávamos. De como é difícil o início. Porque antes do início, ninguém consegue saber como vai ser, o que vai ser, quando vai acabar, se vai ter fim. É como um texto, como começar a escrever a primeira palavra na folha branca e vazia, da preocupação de a letra sair perfeita, de o texto sair sem enganos, das palavras não ultrapassarem as margens.
A importância - ou não - de escolher a primeira cor a tocar no papel, o primeiro traço do desenho, o primeiro toque da tinta. Parece-nos sempre que o sucesso de um texto depende do arranque. E que da precisão de um desenho depende a primeira impressão com o papel. Como se o fim fosse decidido pelo início (como se o Benfica só desse goleadas aos adversários quando marca três ou quatro golos nos primeiros minutos). Hoje, é-nos difícil sentir esta tensão do início. Porque é muito fácil apagar e voltar a arrancar com um texto. É simples corrigir um desenho num qualquer programa de computador. Hoje, quase nada de decide a partir do início. De quase nada depende o arranque. Mas nunca as casas resistirão a um tremor de terra se os alicerces não forem suficientemente fortes. Isso nunca.

quarta-feira, março 10, 2010

É que nem coração de mãe: cabe todo o mundo.

B5/Dona Lena

Uma vez meu filho me perguntou: mãe, que pousada é a nossa? Eu pensei um pouco, vendo o que poderia dizer, e falei para ele: Filho, a gente tem uma pousada do carinho.

B4/Rómulo

Gastronomia é moda que nem roupa. Eles vêm aí, pedem um pastel de camarão, tomam um chôpe, conversam, ficam até de madrugada. Temos o recorde de venda de chôpe por metro quadrado. Actores, cantores, políticos. Aí vai, aí vêm. Temos o bar mais democrático daqui. Porque aqui vem todo o mundo. Rico e pobre. Político, médico, músico e varredor de rua.

sábado, março 06, 2010

B3/Dona Gioconda

Gosto de coisas vivas, de trabalhar com seres vivos. Por isso as ostras. Daí ter vindo. Os meus filhos continuam lá. E eu aqui. Sempre que tem algum problema, minha filha sempre liga e me diz, 'mãe isto, mãe aquilo'. Meus filhos sempre pensam que a mãe resolve qualquer coisa.

B2/Seu António

Hoje vim para matar a saudade. A minha vida é todo um romance. Ai, o vinho Teobar. Deu uma saudade agora. Pois é. Volto lá de dois em dois anos. Fui em 2005, voltei em 2007. No ano passado não. Tenho um filho com dois anos. De uma segunda mulher. A 'minha patroa', como se diz às vezes, morreu-me em 2003. Faço 40 pastéis de Belém, e ando aí a distribuí-los. É muito trabalhoso, mas sempre distrái a saudade. Deu agora a saudade. Ai que saudade de Portugal. Um dia eu volto. Gostava de voltar.

B1/Seu Roland

Fui registado Rolando mas não acredito que o meu pai alguma vez no registo tenha dado esse nome para mim. Sou Roland. Sou filho de pais brasileiros, nunca falei senão alemão. Falo português por necessidade. Os alemães são chatos. São frios. Tenho a língua alemã no coração de um brasileiro. O quente e frio. E quando era pequeno andava sempre descalço. Todos andávamos. Quando havia algum assunto tabú, sobre o qual os adultos não pudessem falar, diziam: aqui não, tem demasiada gente descalça.

terça-feira, março 02, 2010

Ano um

i num instante, tudo mudou. Ocupei-me das palavras a tempo inteiro. Passei a depender da actualidade sem pensar no ontem e de olhos postos no amanhã. Acelerei o passo, deixei de ter tempo livre. Realizei-me. Hoje é o ano um.

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Petite

Nortada e nós deitados na toalha de praia com franjas nas pontas e manchada do tempo. Entre as memórias das barracas de pano às riscas, montadas no areal enorme e dividido em parcelas pelo paredão de pedras. E identificado por zonas pelos cafés. O Visual, renovado todos os anos com cores e balcões e mesas e cadeiras, tudo novo. Havia o Bronze onde reunimos o grupo de amigos durante a tarde. Há o Contiqui, o Prefácio, o Posto 5 e outros que não têm nome.
Havia o banho-maria dos crepes de maçã com amêndoas. E nós descalços, sentados no passeio baixinho de betão, a sacudirmos a areia dos pés. Voltávamos muitas vezes a casa dois a dois, montados nas bicicletas dos primos. Aos ziguezagues, lá tentávamos não falhar os buracos da estrada. Íamos, com toda a pompa e circunstância reduzindo o ar dos pneus, tentando furar aqui e ali a borracha negra, gastando a pouco e pouco o que restava das rodas envelhecidas ao longo dos anos. E às vezes, ficavamos um ou dois para trás, numa última tentativa de mergulhar na água salgada e gelada do mar da Costa Nova, sem sabermos bem de que terra éramos quando parecia que se nos gelava o cérebro.
Sempre foi fácil perceber porque eras sempre a última a chegar e a última a partir. Preparavas a ceira, levavas ameixas lavadas e frescas, e pão de bico com ovos mexidos e salsichas cortadas às rodelas. Às vezes não arriscávamos deitar os caroços das rainha-cláudia na areia: já sabíamos que ias apoiar-nos e isso era mau. E quando te pedíamos para nos ajudares a construir um barco na areia, lá enchias tu as unhas com o verniz vermelho descascado de areia e punhas mãos à obra, que a embarcação não podia esperar. Nenhuma brincadeira espera pelo tempo certo. Ela aparece. E sempre soubeste isso.
E tomávamos banho de mangueira, água gelada, que arrepiava ao ar fresco da nortada. Tantas vezes passámos pelo corredor de casa ainda a espalhar os grãozinhos. Tu olhavas por cima das lentes rectangulares, e fingias que não vias. Acenavas com a cabeça a dizer que não - como se fosse algo de extraordinário tentar perceber as atitudes de miúdos com menos de dez anos. E andavas depois, cigarro nos lábios (e com a cinza a pingar, a parecer água), óculos pendurados ao pescoço, a varrer o areal que deixávamos nos cantos da casa de madeira, difícil de tirar. Paciente, nunca pediste que apressassemos as arrumações, nem as mudanças, nem nada. Sempre elogiaste aquilo que fazíamos bem e nunca deixaste de criticar aquilo em que éramos maus. Conseguiste sempre ver o bom, o bem, o certo. Distinguiste o azedo do doce, como se disso se tratasse a vida. E é bom recordar assim os dias compridos do verão que jamais será o mesmo.

domingo, fevereiro 14, 2010

Valentine's

Frio. Não, nem penses nisso. Isso nunca. Tens de esforçar-te mais do que isso. Não foi imediato, mas foi quase. Arrebatador, como o descrevem. Acabaste de ir e já te sinto a falta. é difícil estar aqui. Sustenho a respiração, não consigo evitar. É mais forte, mais rápido, mais imediato. Soube ser de outra maneira, sim. Admito. Mas agora não consigo. E não peço desculpa. Tem de ser assim. Inevitável. O amor pega em ti, deixa-te sem fôlego, aperta-te o estômago, não te deixa pensar, nem fugir dele. Quem me dera. Arrebatador.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Adelino

Não sei se já te tinha dito que ele se chamava Adelino. Tinha? Pois. Era. Chamava-se Adelino. Era baixo, careca e tinha uns óculos redondos, de massa preta e lentes semi-garrafais que lhe ocupavam metade da cara. Verdade, podes acreditar. E sabes que mais? Ficavam-lhe bem. Digo semi-garrafais porque lhe conseguia ver bem os olhos, apesar da graduação. Punha aveia na sopa, sabias? E vinagre. Adorava vinagre. E dava-nos mel às colheradas, e no pão. Era isso, pois. Mel no pão. E tangerinas, no quintal, mesmo às vezes no inverno, quando as gotas do orvalho da manhã ainda pingavam nos ramos estreitos. E lembro-me de quando as magnólias branca e cor-de-rosa floriam em Janeiro. Parecia que tombavam para a estrada com tantas flores. Mas das magnólias falo depois, que isso dá para outro tanto. As flores reflectidas nas lentes. Mas sim. Falava-te dele. Baixo, pequeno. Sempre de fato cinzento. E de camisa branca. Era um homem grande, ele. Sempre amigo dos amigos. E de quem não conhecia de todo. Sempre com vontade de ajudar, de fazer, de dar. Nunca foi rico por isso, justificam alguns. Que pelo andar no negócio seria, se não tivesse fiado tanto. E nunca ficou a dever nada a ninguém. Mas falava-te dele, era. Acho que nunca te tinha dito que se chamava Adelino. Nem naquele dia em que me contaste, a medo, que tinhas um assim. Foi, não foi? Disseste-me: vou contar-te uma coisa, mas promete-me que não te zangas. E eu sorri, já a adivinhar-te o brilho nos olhos. Como se me fosse estranho que me contasses os teus segredos. Pois era. Era Adelino. Estranho, nunca ter-te contado. Não achas? Mas o que se me estranha mais em toda esta história nem é isso. Não é nunca ter-te falado de como sorvia a sopa com aquele barulho. Nem da maneira como descascava os gomos de tangerina. Nem do modo como arrastava os pés. Nem do aroma doce do perfume que ele mesmo fazia lá em casa. Aquilo que mais me intriga nisto tudo é saber que não te contei que sempre tive dúvidas de como é que um coração tão grande pode caber num homem tão pequeno como ele. E nele, surpreendentemente, cabia mesmo.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Do S. Valentim antecipado


Põe-te na montra da minha memória e não entre os peluches de ursos e corações que dizem 'amo-te' - em letras gordas - na barriga.
Desfila todos os dias no meu quotidiano. Não penses em vir dia sim, dia não, como se pudesses abdicar de viver.
Abre a porta do meu mundo e ensina-mo. Quero vê-lo pela tua perspectiva, ouvi-lo contar com a tua voz, e saber-te espectador participante.
Quero que saibas que podes vir todos os dias. Que não precisas de pedir licença para entrar.
O S. Valentim vem e vai, todos os anos. E eu quero que tu estejas comigo todos os dias.

terça-feira, janeiro 26, 2010

Paris

Estava fria. Chuvosa. Nostálgica. Preferia ter-me lembrado num dia de sol. Ou numa esplanada aquecida, com um capuccino na mão. Ou debaixo de um calor abrasador. Ou então, não me ter lembrado, de todo. Não fazes falta agora. O que passou, passou.
E Paris continua linda.

terça-feira, janeiro 19, 2010

Ao sétimo dia.

O que eu dava para estar lá, para ir para lá. Para assistir, para reportar, para ver e contar as histórias. Para as poder escrever duramente. Para perceber o que é assistir à perda sem nada poder fazer. Para doer no coração a falta de água, para dar valor ao que tenho, ao que tive, ao que não tive, ao que ainda hei-de ter. O que eu dava para poder ir sem pestanejar. Para ajudar. 75 mil mortos oficiais. Desaparecidos. Caras que nunca mais se verão. Nunca mais serão beijadas. Corpos que nunca mais serão abraçados. Conversas perturbadas pelo espirro arrebatador de uma terra a que chamavam casa. E agora, ao sétimo dia, nada mudou. As caras são as mesmas. As dúvidas as mesmas. Só os números mudam. Acumulam. Morte. Morte.
Há uma semana o meu pensamento estava aqui. O que eu dava para o escrever. E o que eu dava para nunca ter podido escrevê-lo.

Do dia seguinte

Olhei-me ao espelho ainda não era de dia, e os olhos, encovados, quase desapareciam na cara. Olhei-me mais uma vez, e nem uma alteração, uma pequena diferença, um sinal que me desse a ideia de quem era aquela ali defronte de mim. Face àquela cara, corri contra os atrasos pouco habituais e comi devagar, com a calma de quem levantou o rabo da cama um pouco mais cedo para despertar com calma. E que adiou depois o despertador, de maneira a estoirar os minutos que sobravam naquele vale dos lençóis quentinho que tanto ajuda nos pensamentos. Expliquei-me num ápice o que tinha de ser hoje. No dia seguinte ao dia que se seguiu à véspera. Mas o sentido prático das coisas sobrepôs-se à confusão de dias. Deixei-me apressar pelos ponteiros velozes do relógio e sentei-me. Acomodei-me aquel aconchego quente. Esperei pelas torradas. Nada de novo. Valeu-me a vontade para contrariar o peso dos olhos. Os olhos pesaram no dia seguinte, como se tivesse dormido muitas horas. Ao contrário. Não dormi. À insónia juntou-se naquela manhã um dia que acabou a dançar. Tal como eu pedi.

quinta-feira, janeiro 14, 2010

Do dia

Vou acordar cedo como gosto e vou correr para não me atrasar. Como sempre. Com sorte, vou conduzir sem ter de parar nos semáforos, que o caminho faz-se a caminhar. Quero que não chova hoje - que eu não gosto nada de chuva - sobretudo em dias especiais. E hoje é um dia assim. Pego em mim e corro depressa, como sempre, numa vida que é quase uma acelera que não falha a marcha, mesmo que às vezes se meta por becos sem saída. E quero que o dia seja assim perfeito, que não quero aborrecer-me com coisas sem importância. Quero escrever. Escrever muito. Cansar-me de escrever, descansar de escrever, e redescobrir-me a escrever. Quero olhar para as coisas e sentir-me dentro delas, num aquário do qual me alimento e do qual depende a minha sobrevivência. E depois quero ler as palavras e sentir-me ali, rever-me nos substantivos, nos verbos. Nos sujeitos e nos predicados. Quero deixar a minha marca nos dias que vivo, nas vidas que passam por mim. E deixar-me aí, nesses lugares, é deixar as história dos outros em mim fazer história nos recantos que percorro, tantas vezes apenas em imaginação. Que eu sou louca por viagens. E sinto que o mundo é um sítio que merece ser descoberto e descrito letra a letra. Que é como quem diz, lugar a lugar. E entre as letras, vou receber palavras engraçadas, abraços apertados. E vou ter saudades dos que não me ocupam os dias fisicamente, ou dos outros ainda que as horas teimaram afastar. Quero - depois de tudo isto - merecer dançar. Muito. Rodopiar em cima do meu corpo. E esperar activamente que esta coisa do aniversário me passe. Que isto de ser um dia especial meio camuflado no meio de um dia normal, deixa-me algumas dúvidas.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Do dia de véspera

Falava-te eu das minhas coisas. De como sou perfeccionista, e mal-humorada (às vezes) e antipática à primeira vista. Falava-te de como tive a sorte da tolerância dos que me rodeiam. A sorte de me cruzar com as pessoas certas. A graça de me rir dos meus disparates. De como penso em coisas tão diferentes enquanto conduzo, da rapidez com que entretanto olho para o relógio no tabeliê e mudo instantaneamente a estação de rádio porque me apercebo que é hora das notícias. Ou então da maneira como grito alto pela música que aumento para o máximo na rádio. E sorrio enquanto bamboleio os ombros de um lado para o outro, como se estivesse metida numa pista só minha. Falei-te das coisas tal qual são. E do que nem sempre é o que parece. De como sou tão casmurra e da maneira como num instante peço perdão e corro a emendar erros que detecte. Por mais pequenos que sejam. Porque são meus. Sou sempre tão pragmática que invejo às vezes dos desaustinados, sempre tão despreocupados e tão sem peso nos ombros. Mas decerto não os invejo mais do que invejo os pássaros e a visão que não falha, que podem ter vistas panorâmicas a qualquer momento. Por mim andava sempre a sobrevoar Lisboa que adoro, cidade poema. Apaixonante. E sou imperfeita, bem sei. E gosto. É avassaladora a maneira como o meu coração acelera o "passo" quando falo dela. Só nunca posso comparar esse batimento ao que sinto quando penso em ti, pequena Mi. Que fazes parte de mim. És a minha cabeça, o meu corpo, o meu coração. E se algum dia me faltas, faltar-me-ei eu também, tal como as letras que teimo em escrever todos os dias naquela sala enorme e iluminada que me colora os dias. E onde eu pinto as linhas de realidade. E observo com cuidado as imagens que não sei captar. E analiso com olhos de cirurgiã os espaços vagos naquela folha de agenda demasiado cheia e às vezes tão vazia. Sinto-me como se a vida ainda estivesse toda por viver. E é essa a esperança que me preenche hoje. Na última noite destes 24 anos. Passei-a a escrever, como gosto. E a pensar baixinho para não acordar ninguém. Que gosto pouco de dar nas vistas por estas coisas pequenas. Mas só me calo - que já sabes - sou tagarela que dói - se me prometeres que, como prenda para os 25, me dás uma hora a mais em cada dia. É justo, vá lá. Foram 24 anos da minha vida a (sobre)viver com dias de apenas 24 horas. Dava-me um jeitaço.

terça-feira, janeiro 12, 2010

hey babe, take a walk on the wild side. let's take a walk on the wild side.

Don't be shy. come with me. let's take a walk.

80 tentativa #3

Queria ter-te escrito estas linhas a tempo de tas poder ler alto na festa daquela noite de dia 8, mas escapou-se-me o tempo, e a imaginação. E sobretudo, apoderou-se de mim o medo de não estar à altura de palavras tão especiais, que pudessem descrever-te bem. Por isso escrevo atrasada. Por isso pensei estas letras - insuficiente mas duramente. Por isso vou ter cuidado com os caracteres, começar de mansinho, e de uma maneira que me distinga de ti. O atraso. É esse que nos distingue hoje. Nunca te atrasarias - ao longo dos teus 80 anos - para entregares uma prenda de anos, muito menos se essa prenda dependesse unicamente de ti. A gestão do teu tempo é perfeita, sobra sempre para mais uma viagem, para outro telefonema, para perguntares se está tudo bem? se já jantaram? ou se já chegaram?.

Escrevo-te todos os dias um pouco aqui, quando não te escreves tu em mim. Sei que herdei de ti tanto do que sou e aprendi outro tanto de ti também. Que, de tudo o que sou e de todo o resto que julgo ser, nem sei o que de ti veio e o que vinha comigo de origem.

Queria primeiro agradecer-te tudo aquilo que nos dás, todos os dias. Vai ser sempre bom lembrar-me de ti, porque de ti não ficam senão as palavras doces e preocupadas, os telefonemas em contínuo, e as surpresas. Escreves em poesia, falas em prosa, sentes tudo de uma maneira especial. E consegues demonstrar todos os dias que, por mais que a vida teime em mostrar o quanto pode ser azeda e madrasta, há sempre o açucar que pode encarregar-se de adoçar os dias mais amargos. Mexe os cozinhados com empenho e amor, como sempre tens feito. Aposto que guardaremos sempre connosco o teu dedo para a culinária, mesmo que mais 80 anos passem.

80 tentativa #2

Todas as palavras do mundo não chegariam - ou talvez uma apenas chegasse - para descrever o impacto que tens nas nossas vidas.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

80 tentativa #1

Não consegui (ainda) escrever-te aqui.

terça-feira, janeiro 05, 2010

Electrodomésticos

Conheci-te debaixo de uma nuvem carregada de chuva, num dia sombrio de céu cinzento e de muito vento. Tinhas vestido um anorak branco que era um prolongamento da tua pele pálida e sem graça, que eu teimo em não apagar da memória. Como se fosses assim tão especial. Como se as tuas piadas me fizessem rir, apesar de não falarmos há tanto tempo e de já nem recordar o teu nome. A memória passa-me assim estas rasteiras, enquanto folheio as frases que escrevi só para que lesses aquilo que me passava pela cabeça e que nunca conseguiste decifrar-me nos olhos, apesar de teres lido todos os livros de instruções. Nunca percebeste que teres-me a olhar para ti não significava que eu fosse tua. E a receita para me entenderes era abrires o coração.